Eleição polarizada na Holanda é termômetro político da Europa

Geert Wilders, candidato da extrema-direita, acirra os ânimos em país que cresce, mas sente efeitos da austeridade

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 15/03/2017

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Yves

Wilders e Rutte, em Roterdã, durante debate: o atual premiê promete não realizar um governo de parceria com o extremista (Yves Herman / AFP) 

 

O ano de 2017 será decisivo para o futuro da Europa. Na sequência do Brexit e das eleições norte-americanas, os próximos meses serão marcados por eleições em países chave para a estabilidade do projeto europeu.

Com a proximidade das eleições na França em abril e na Alemanha em setembro, a disputa eleitoral na Holanda, que ocorre nesta quarta-feira 15, emerge como uma espécie de termômetro das tensões políticas que marcarão 2017.

As eleições decidirão quantos assentos no Parlamento holandês os partidos políticos disputando o pleito poderão ocupar. Esse processo é crucial para a escolha do primeiro-ministro, que se dá por voto indireto.

O parlamentarismo que vigora na Holanda é marcado por intensa proporcionalidade, o que significa, em termos gerais, ser extremamente improvável que um partido consiga a maioria absoluta das cadeiras do Parlamento. É imprescindível que os partidos eleitos construam coalizões capazes de garantir maioria. Isso viabiliza a governabilidade e permite que um gabinete ministerial seja formado a partir das indicações de um membro eleito pelo próprio Parlamento.

Num sistema político extremamente complexo, 28 partidos holandeses disputam 150 assentos no Parlamento. Quatro partidos lideram as pesquisas até agora. O partido de centro-direita do atual primeiro-ministro Mark Rutte (VVD) disputa ombro a ombro com o PVV, do populista de extrema-direita Geert Wilders.

Atrás deles, por alguns pontos percentuais, vêm o CDA, partido democrata-cristão, e o GL, a esquerda verde, liderada pelo jovem Jesse Klaver, que aos 30 anos é a grande aposta de renovação da esquerda holandesa.

Para Karola Vos, 33 anos, moradora da cidade de Utrecht, as eleições deixaram ainda mais clara a polarização da sociedade holandesa: “As pessoas são cada vez mais radicais na maneira em que expressam suas opiniões”. Perguntada sobre como vê o país nos próximos cinco anos, não parece muito otimista: “Acho que as pessoas estarão ainda mais insatisfeitas com o sistema, com a política em geral e em conflito entre si”.

Mas, de onde vem esse pessimismo? A economia holandesa não vai mal. Os índices mostram que o país se recuperou de maneira efetiva da crise de 2008. De acordo com o CPB, o instituto de pesquisa em políticas econômicas da Holanda, o PIB do país cresceu 1,8% em 2016 e a projeção para 2017 é de 2,0%.

A taxa de desemprego no ano passado ficou em 6,5%, com projeção de queda para 6,3% em 2017. Se comparado ao desemprego de 7,4% em 2014, o cenário atual é de visível melhoria das condições econômicas. Por que os holandeses parecem insatisfeitos e apostam em saídas arriscadas como o populismo de extrema-direita de Geert Wilders?

A resposta para a insatisfação e a descrença dos holandeses pode ter vindo do remédio para a crise de 2008: as medidas de austeridade e a maneira como elas afetaram a população. Embora o sistema de seguridade social continue funcionando, os serviços de saúde e assistência social sofreram inúmeros cortes na Holanda. Os mais atingidos foram idosos e setores mais fragilizados da sociedade.

A elite política holandesa tentou se proteger dos efeitos eleitorais desse impacto social acusando os burocratas de Bruxelas – responsáveis por desenhar as políticas econômicas anticrise implementadas em vários países da União Europeia. Por outro lado, a extrema-direita capitaneada por Geert Wilders buscou um bode expiatório menos abstrato e mais visível aos olhos do holandeses: os imigrantes.

Daniel Schiavini, brasileiro naturalizado holandês que vive no país há 9 anos e trabalha como programador numa multinacional de softwares, vê com preocupação o que está em curso na sociedade holandesa: “A economia pode até crescer, mas o dinheiro não está indo para quem mais precisa.”

Para ele, o impacto do discurso de ódio aos imigrantes propagado pela extrema-direita será intenso: “As pessoas estão bravas com a situação e Geert Wilders conseguiu colocar a culpa de tudo nos imigrantes, o que acaba criando um clima maior de intolerância”.

Os dados empíricos mostram, no entanto, que a entrada de novos imigrantes na Holanda foi reduzida pela metade após acordos entre a União Europeia e a Turquia para fechar rotas usadas por refugiados vindos do Oriente Médio.

A imigração continua um assunto delicado. A Holanda é um país de 17 milhões de pessoas, onde aproximadamente 3,8 milhões são imigrantes. As tensões culturais entre imigrantes não europeus e a população local é constantemente explorada por grupos de extrema-direita.

A extrema-direita

Embora a imagem internacional da Holanda seja a de um país progressista, os últimos anos têm sido de avanço da extrema-direita capitaneada pelo Partido da Liberdade (PVV), liderado por Wilders.

No ano passado, ele foi condenado pela justiça holandesa por incitação ao ódio contra imigrantes depois de uma aparição pública em que perguntava a seus seguidores se eles queriam mais ou menos [imigrantes] marroquinos no país, “menos, menos”, gritaram pessoas da plateia.

Wilders vem promovendo uma espécie de cruzada anti-islâmica e anti-imigração. Ele propõe, entre outras medidas, fechar todas as mesquitas do país e proibir o uso de véus em espaços públicos.

Segundo ele, o islã não é uma religião, mas uma ideologia antiocidental. Isso, obviamente, o coloca em rota de colisão não apenas com os imigrantes de origem muçulmana, mas com a própria tradição de tolerância e multiculturalismo que a Holanda projetou para si no cenário internacional.

Mesmo assim, a retórica xenófoba e racista de Geert Wilders magnetizou vastos setores da sociedade holandesa, fragilizados pela crise econômica e pelo sentimento de descrença em relação à política tradicional.

Após sua condenação por incitação ao ódio, vários políticos de partidos tradicionais de direita, como o atual primeiro-ministro Mark Rutte (VVD), vieram a público para dizer que não trabalhariam com Wilders em uma futura coalizão.

A recusa da direita tradicional de se coligar com ele significa, na prática, que, mesmo que seu partido seja o mais votado nas eleições – algo que pode ocorrer de acordo com as pesquisas –, a possibilidade de ele se tornar o primeiro-ministro é muito remota. Sem se tornar parte de uma coalizão com maioria parlamentar, seu poder de influência na formação do novo gabinete ministerial é pequeno.

Klaver em entrevista em 14 de março: ele pode ajudar a renovar a esquerda holandesa

O sucesso eleitoral de Wilders deixa claro que, na Holanda e na Europa, o gênio do populismo está fora da garrafa. “Wilders já é o político mais influente no país, antes de ganhar ou perder as eleições”, diz Patrícia Schor, pesquisadora da Universidade de Utrecht. Segundo ela, o impacto da sua retórica foi capaz de catalizar sentimentos que já existiam na sociedade holandesa: “Wilders alargou a fronteira do que é considerado ético, possível e responsável no espaço público. Naturalmente, ele não inventou a xenofobia e o racismo na Holanda. Astuta e antiteticamente, ele faz uso de sentimentos de intolerância já muito presentes na sociedade holandesa.”

Segundo a historiadora Marianne Wiesebron, da Universidade de Leiden, a retórica de Wilders produziu uma guinada conservadora no debate público, radicalizando o discurso: “Os partidos de centro-direita certamente foram ainda mais para a direita para se aproximarem dos eleitores de Wilders, especialmente em questões como a imigração.” 

A aposta da esquerda      

Os partidos tradicionais de esquerda na Holanda passam por uma profunda crise de identidade, que tem como resultado imediato a perda de parte considerável do seu eleitorado.

O Partido Trabalhista holandês (PvdA), tradicional eixo de centro-esquerda, se desgastou nos últimos anos ao aderir à coalizão de centro-direita que governa o país atualmente: perdeu, assim, sua identidade histórica.

O Partido Socialista holandês, o SP, com agenda mais à esquerda, parece ter perdido parte da capacidade de dialogar com os anseios do eleitorado de esquerda, e aparece nas pesquisas recentes com cerca de 9% das intenções de voto.

A novidade no cenário parece ser Jesse Klaver, do partido Esquerda Verde (GL). Segundo a historiadora Marianne Wiesebron, “O Groen Links (Esquerda Verde) está subindo incrivelmente nas sondagens em grande parte pelo apelo de Jesse Klaver, por ser jovem, de esquerda e pró-europeu”.

O jovem de 30 anos, com descendência marroquina e indonésia, aposta no discurso da sustentabilidade: propõe, entre outras coisas, reformas fiscais para cobrar mais impostos de empresas que poluem e redistribuir renda para setores mais fragilizados da sociedade.

Chamado por alguns de  “Jessiah”, um trocadilho com seu nome (Jesse) e a palavra “messias” (messiah), Jesse Klaver parece ser a grande aposta da esquerda. Seu carisma arrebanha uma grande quantidade de jovens, até então desacreditados. Embora seu partido tenha crescido muito nas intenções de voto, em grande parte graças a sua atuação, sua capacidade de liderança será posta à prova no Parlamento diante da crise da esquerda holandesa e mundial.

Para a pesquisadora Patricia Schor, os desafios são imensos: “Não acredito que a Esquerda Verde consiga fazer frente a este conservadorismo que ganhou proeminência na Holanda, como em vários países europeus. Mas gostaria muito de ser contrariada pelo resultado das eleições.”

 

No ano de seu centenário, textos inéditos encontrados na Inglaterra revelam aspecto desconhecido de Antônio Callado

Em 26 de janeiro de 2017, o escritor brasileiro Antônio Callado completaria 100 anos se estivesse vivo.

por Daniel Mandur Thomaz, publicado pela BBC Brasil em 30/01/2017 e republicado pela Folha de São Paulo

BBC: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38794242

Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/01/1854147-textos-ineditos-de-antonio-callado-revelam-faceta-desconhecida-do-autor.shtml

Callado em 1972

Antônio Calado, cuja morte fez 20 anos no sábado, escreveu peças para teatro e romances consagrados como “Quarup”

Considerado por críticos como o americano Raymond L. Williams como um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século 20, a obra de Callado permanece mais atual do que nunca.

Mais do que isso, o autor brasileiro continua surpreendendo o público com novidades. A descoberta, em arquivos britânicos, de peças de teatro escritas por Callado para serem transmitidas por rádio durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz à tona um uma face praticamente desconhecida do autor.

Tais peças têm o potencial de lançar uma nova luz sobre sua obra e seu período de formação intelectual no Reino Unido, país em que viveu como correspondente de guerra entre 1941 e 1947.

Peças para teatro

Antônio Callado estreou oficialmente como dramaturgo em 1951, com a peça O Fígado de Prometeu, mas ganhou notoriedade mesmo com Pedro Mico, em 1957. Ele foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros.

A partir de Pedro Mico, Callado escreveu uma série de textos de teatro com personagens e temas que discutem, direta ou indiretamente, o racismo no Brasil, como Uma Rede para Iemanjá (1961), O Tesouro de Chica da Silva (1962) e A Revolta da Cachaça (1983). No entanto, a descoberta recente em arquivos britânicos revela que o autor já escrevia peças nos anos 40, algo ignorado por grande parte dos críticos e biógrafos até então.

Antonio Callado em 1941

Callado chegou à Inglaterra em 1941 – ano marcado por bombardeios alemães sobre Londres

 

A vida de Antônio Callado se confunde de forma fascinante com a história do século 20. Como jornalista, cobriu eventos como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1968), essa última como enviado do Jornal do Brasil em 1968.

No início dos anos 60, escreveu uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo “indústria da seca”.

‘Quarup’

Como romancista, Callado começou a pavimentar seu caminho ainda em 1954, com Assunção de Salviano, que tem como pano de fundo justamente os conflitos fundiários do Nordeste.

No entanto, é com o romance Quarup, de 1967, que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos como o romance mais importante da década de 60, Quarup – nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu – tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas, se converte em militante contra a ditadura militar (1964-1985).

Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob as chamadas “reformas de base”, colocadas como bandeira do governo João Goulart e barradas abruptamente pelo golpe militar de 1964.

A partir dos anos 1970, o escritor produziu romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo no Brasil e da incapacidade das esquerdas de produzir um projeto de enfrentamento da ditadura que oferecesse uma saída estruturada para o país. Tais questões são abordadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).

Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do país, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antônio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista.

Callado na BBC em 1942

Último romance, “Memórias de Aldenham House” (1989), explora o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando trabalhou como jornalista na BBC

BBC e Segunda Guerra

Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, Callado assinou contrato com a então jovem Seção Latino-americana da BBC, que começara a transmitir em português e espanhol apenas alguns anos antes, em 1938. Depois de atravessar o Atlântico em plena guerra, Callado pôs os pés pela primeira vez na ilha que mudaria sua vida: a Grã-Bretanha.

Vivendo em Londres como redator e tradutor da BBC – e um dos pioneiros do que viria a ser mais tarde a BBC Brasil – Antônio Callado deparou-se pela primeira vez com os dramas da guerra. Vivenciou de perto os bombardeios sobre a cidade, o racionamento de comida e de itens básicos como papel, ao mesmo tempo em que observou a fantástica capacidade britânica de união nacional em torno da resistência ao avanço nazista.

Na Inglaterra, Callado também conheceu Jean Maxine Watson, funcionária britânica da BBC com quem se casou em 1943. O casal retornou ao Brasil em 1947, onde tiveram três filhos, ficando juntos até o falecimento de Jean Maxine, em 1973. Antônio Callado ainda viveria por mais duas décadas. Ele morreu em 28 de janeiro de 1997.

Em entrevista para a crítica literária Ligia Chiappini, ainda no início dos anos 80, Callado revela que foi na Inglaterra, durante a guerra, que descobriu sua “paixão pelo Brasil”: “De repente, começou a bater aquela saudade do Brasil. Tão grande…”.

A saudade e a descoberta do amor pela terra natal fariam Callado percorrer o Brasil inteiro, anos mais tarde, já como renomado jornalista do Correio da Manhã.

Sua estadia na Inglaterra teve também um papel essencial na sua formação intelectual. Em entrevista concedida ao sociólogo Marcelo Ridenti, em julho de 1996, Callado afirma: “A Inglaterra, para mim, foi mais – o tempo em que eu estive na BBC, cinco anos da minha vida, quando eu era jovem, tinha vinte e poucos anos, aquilo marca – foi para mim como uma educação. Uma universidade que cursei”.

Na comparação de entrevistas que concedeu ao longo da vida com aspectos autobiográficos explorados por Callado em seu último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é possível perceber também que foi durante sua estadia na Inglaterra que o autor conheceu o trabalho dos dois escritores que teriam, a partir de então, grande influência sobre a sua escrita: o romancista britânico Graham Green (1904-1991) e o modernista irlandês James Joyce (1882-1941).

A influência de seus anos na Inglaterra foi duradoura e acompanhou Callado até o fim. Quando faleceu, em janeiro de 1997, o obituário publicado na revista Isto É foi intitulado “Um Gentleman Indignado”, referência à influência britânica, por um lado, mas também a seu engajamento político na luta contra a ditadura (1964-1985). Seu amigo Nelson Rodrigues disse certa vez, em forma de pilhéria, que Callado era “o único inglês do mundo real”.

Roteiros inéditos

Foi em busca de rastros deixados por Antônio Callado na Inglaterra, que iniciei uma pesquisa nos arquivos da BBC ainda em 2014. O resultado foi a descoberta de uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antônio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.

As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e tem o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e sobre o seu processo de formação intelectual. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda esse ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.

Observando peças de rádio-drama como Jean e Marie, transmitida pela BBC em 1943, é possível perceber que vários dos temas e questões que Callado desenvolverá em seus romances dos anos 50, 60 e 70 – como as relações entre misticismo e revolução, entre arte e transformação social e o papel do artista engajado – já aparecem problematizados nas suas peças dos anos 40. Isso revela como sua experiência na Inglaterra durante a guerra impactou sua obra.

Outro aspecto interessante revelado pelas peças é a influência da linguagem do rádio e da cultura de massa dos anos 40 nas obras de Callado. Nesse sentido, seu trabalho como redator e tradutor na BBC foi essencial, já que foi lá que o autor entrou em contato pela primeira vez com a linguagem do rádio, algo que teria posteriormente grande impacto sobre seu estilo.

Callado era um escritor profundamente comprometido com o Brasil. Sua estadia como jornalista na Inglaterra, quando jovem, o ajudou a olhar para seu próprio país por um outro ângulo. Reler, hoje, os livros de Antônio Callado é uma forma instigante de olhar para a história recente do Brasil e para sua relação com o mundo.

A obra de Callado é atual porque não perdeu a capacidade de nos surpreender, combinando o cosmopolitismo do autor com seu olhar ao mesmo tempo afiado e compassivo para o país que ele tanto amava: o Brasil.

*Daniel Mandur Thomaz é professor e pesquisador da Universidade de Oxford

 

 

100 anos de Antonio Callado

“Para além do seu centenário, são os tempos incertos pelos quais passa o País que fazem da releitura da obra de Callado algo tão necessário.”

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 26/01/2017

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/100-anos-de-antonio-callado

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Considerado pelo crítico Raymond L. Williams um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século XX, o escritor brasileiro Antonio Callado (1917-1997) completaria hoje, se estivesse vivo, 100 anos.

Inúmeros eventos marcarão este ano do centenário do romancista, dramaturgo e jornalista: o lançamento de um novo documentário dirigido por Emília Silveira, uma sessão comemorativa na Academia Brasileira de Letras prevista para março e uma conferência sobre sua vida e obra na Universidade de Oxford, Inglaterra, no dia 4 de fevereiro.

Para além do seu centenário, são os tempos incertos pelos quais passa o País que fazem da releitura da obra de Callado algo tão necessário. Trata-se de um autor profundamente comprometido com o Brasil, o que adiciona à sua obra um sentindo ainda maior.

Callado foi um homem cuja vida se mesclou de forma fascinante com a história do século XX. Enquanto jornalista, cobriu eventos que moldaram o mundo contemporâneo, como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1975), esta última como enviado do Jornal do Brasil em 1968.

Enquanto dramaturgo, foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros. Sensibilizado pelo Teatro Experimental Negro iniciado por Abdias do Nascimento em 1944, Callado escreveu, a partir dos anos 50, peças com personagens e temas que problematizam direta ou indiretamente o racismo no Brasil, como Pedro Mico (1957), Uma rede para Iemanjá (1961), O tesouro de Chica da Silva (1962) e a Revolta da Cachaça (1983).

Escritor de mão cheia, estreou como romancista em 1954, com Assunção de Salviano, história cujo enredo tem como pano de fundo os conflitos fundiários do Nordeste nos anos 50. No início dos anos 60, Callado escreve uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo “indústria da seca”.

É com Quarup (1967) que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos o romance mais importante da década de 60, Quarup – nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu – tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas no Brasil profundo, se converte em militante contra a ditadura (1964-1985).

Em passagem antológica, o protagonista, padre Nando, se envolve numa expedição para contatar tribos isoladas e demarcar o centro geográfico do Brasil. Ao fincarem o marco no lugar que acreditam ser o centro do País, os personagens descobrem que o solo onde pisavam era, em verdade, um formigueiro colossal, capaz de devorá-los.

A cena, uma recriação ficcional da expedição original realizada pelos irmãos Villas-Boas em 1958, é uma belíssima metáfora da busca incessante de um povo por sua identidade. Uma longa tradição de pensadores brasileiros, de Oliveira Vianna a Darcy Ribeiro, passando por nomes como Sergio Buarque, Caio Prado Jr. e o próprio Callado, buscaram ao longo do século XX desvendar a alma brasileira, interpretar a identidade nacional e cultural do País e produzir sentido sobre sua trajetória histórica.

Quarup é parte do esforço de Callado por entender o Brasil, com seus enormes dilemas e contradições. O romance é uma reflexão sobre a trajetória recente de uma gente que se fez como povo através de processos históricos brutais, banhados em sangue negro e indígena, e que é pobre embora viva em meio a uma imensa abundância de recursos naturais.

O que Callado parece querer apontar com a imagem de um formigueiro no coração do Brasil é que a identidade de um país não é algo dado e que, portanto, possa ser descoberto, desvendado. A identidade brasileira é movediça, como um formigueiro, e quem tenta fixá-la pode ser por ela devorado. Enfim, o Brasil de Antonio Callado não precisa ser descoberto, ele tem é que ser inventado, construído pelos milhares de brasileiros que, com seu trabalho e movimento, são a matéria desse solo.

Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional-popular acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob a bandeira das chamadas reformas de base, barradas abruptamente pelo golpe de 1964.

A partir dos anos 1970, o escritor produzirá romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo e da tortura no pós-1968, mas também da incapacidade de articulação de um projeto de enfrentamento da ditadura que produzisse uma saída estruturada para o país. Tais questões são problematizadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).

Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do País, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antonio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista da BBC.

Aldenham House é o nome da mansão construída por uma família aristocrática inglesa no século XVII e que abrigou, em plena Segunda Guerra Mundial, os departamentos de transmissão internacional da BBC.

No romance de Callado, um jornalista brasileiro foge da perseguição política do Estado Novo de Vargas (1937-1945) e torna-se correspondente de guerra, convivendo com outros exilados na seção da BBC responsável por transmissões em português e espanhol para a América Latina.

Com o fim da guerra em 1945, quase todas as personagens do romance retornam a seus países de origem e são presas ou mortas por regimes ditatoriais. Embora reproduza na forma da narrativa uma sátira dos romances policiais dos anos 1930 e 40, Callado parece sugerir que, na trama política da América Latina, o assassino não é o mordomo, como nos clichés detetivescos, mas sim a tradição autoritária dos países da região.

Foi em busca de rastros deixados por Antonio Callado na Inglaterra que este autor iniciou uma pesquisa nos arquivos da BBC em 2014 e descobriu uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antonio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.

As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e têm o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e o seu processo de formação intelectual na Inglaterra. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda este ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.

Aos 100 anos, Antonio Callado continua nos oferecendo novidades. Seu trabalho parece mais atual do que nunca. Através de seus romances, peças e reportagens é possível compreender melhor a trajetória recente do país, algo essencial para que possamos repensar nossos rumos e superar nossas contradições. Afinal, como disse o crítico Davi Arrigucci, um país que já produziu homens como Antonio Callado não pode desistir de ser alguma coisa.

A indústria da precariedade no Brasil

“A corrupção é apenas a ponta do iceberg, o aspecto mais visível de um mecanismo de exploração da miséria que transforma a ineficiência dos serviços públicos em um grande negócio”

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 20/12/2016

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/a-industria-da-precariedade

Em 1959, o jornalista e romancista Antônio Callado escreveu uma série de reportagens seminais para o jornal Correio da Manhã. Nelas, denunciava a exploração política da seca e os conflitos agrários no nordeste, fixando na linguagem corrente a expressão “indústria da seca”.

Callado usou o termo para caracterizar a forma de atuação de forças políticas locais capazes de explorar a tragédia da seca para obter vultuosos recursos federais, que acabavam desviados para fins particulares.

De lá para cá, algumas coisas mudaram no Brasil, muitas outras não. O que se evidencia nos escândalos envolvendo empreiteiras, grandes empresários e políticos poderosos em 2016 é que alguns elementos enxergados por Callado em 1959 não apenas continuam atuantes, mas parecem ter se tornado ainda mais operacionais.

Nesse contexto, a corrupção é apenas a ponta do iceberg, o aspecto mais visível de um mecanismo de exploração da miséria que transforma a ineficiência dos serviços públicos em um grande negócio, uma verdadeira indústria da precariedade.

Protesto contra a corrupção

O caso do Rio de Janeiro ilustra bem essa história.

A operação Calicute, que prendeu o ex-governador Sérgio Cabral, revelou um esquema de propina milionário ligando o governo do estado, nas mãos do PMDB desde 2003, e empreiteiras como a Andrade Gutierrez e a Carioca Engenharia. O esquema envolvia o pagamento de mesadas das empresas ao governador e seus correligionários, em troca de fraudes em licitações com o estado.

Entre as operações de fraude, destacam-se desvios de verbas federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recursos para reformas no Maracanã, tendo em vista a Copa do Mundo.

A Polícia Federal e o Ministério Público estimam que, apenas entre 2007 e 2014, as propinas somem 220 milhões.

O caso da construção do Arco Metropolitano é emblemático. A primeira fase do projeto, entregue em 2014, tinha como objetivo diminuir os engarrafamentos em gargalos urbanos como a ponte Rio-Niterói e a via Dutra, além de fornecer acesso expresso a pontos estratégicos de desenvolvimento econômico, como o Porto de Itaguaí e o futuro polo petroquímico de Itaboraí, o COMPERJ.

Obviamente, não foi isso o que foi entregue.

No dia 15 de agosto de 2015, o jornal O Dia publicou matéria intitulada “A estrada do descaso”, onde denunciava que a rodovia, inaugurada então há um ano, estava “sitiada por mato, buracos e violência”.

Artigos de 2015 em quase todos os veículos da imprensa nacional são parecidos: denunciam os problemas de estrutura, conservação e ressaltam que a obra, orçada a 965 milhões em 2008, acabou custando 1,9 bilhão. Isso pelos 71 quilômetros entregues em 2014.

Nada é novo aqui. Seria possível citar milhares de obras como o Arco Metropolitano: ruas, estradas, escolas, casas populares, hospitais, sistemas de saneamento e transporte público.

Para cada tragédia brasileira, pequena ou grande, há um milionário. A precariedade é um excelente negócio para alguns grupos políticos e para grandes empresários de setores como transporte, construção civil e toda a sorte de serviços imagináveis, fornecidos ao Estado através de terceirização.

A narrativa que se tem difundido nos veículos de imprensa associa fortemente os escândalos de corrupção ao estado, mas geralmente evita mencionar o papel da fina flor do empresariado brasileiro, sem o qual nada disso seria possível.

Na indústria da precariedade, a corrupção é o princípio operacional, o modus operandi. A prática, no entanto, é tão velha quanto as elites brasileiras, que a empregam sistematicamente há muito tempo.

Trata-se de um mecanismo extremamente eficiente de acumulação de bens e de perpetuação de privilégios. Nesse aspecto, o Brasil é muito eficiente: o país se constituiu historicamente como um grande empreendimento extrativista e vastos setores da população são usados como lenha para manter acesa as caldeiras desse engenho.

O arcaísmo como projeto 

Ainda no período colonial brasileiro, uma pequena elite mercantil se constituiu mediante atuação em um mercado imperfeito, “não regulado pela lei de oferta e procura, mas sim por privilégios obtidos na esfera política”, como ressaltam os historiadores econômicos João Fragoso e Manolo Florentino.

Em O Arcaísmo como projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, os autores mostraram como o sistema produtivo na colônia operava por mecanismos deliberadamente rudimentares de produção agrícola, possibilitados pelo latifúndio e pela farta – e relativamente barata – oferta de mão de obra escrava.

O sistema econômico era, portanto, organicamente articulado a uma hierarquia social profundamente excludente e a um ideal aristocrático que inviabilizava a dinamização das atividades econômicas.

Não foi por acaso que o tripé baseado em escravidão, latifúndio e exportação de bens primários foi mantido à mão de ferro como o modelo dominante. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, em 1888, mas o sistema oligárquico que promoveu a transição para a República em 1889 parecia-se muito com o que existia antes e com o que se produziu depois.

Embora o século 20 tenha visto transformações profundas na configuração do país, certamente pela via da modernização conservadora da Era Vargas (1930-45) e pelo desenvolvimentismo dos anos JK (1956-1961), os aspectos estruturais que configuraram as relações entre estado, sistema produtivo e elites nacionais produziram marcas profundas.

A articulação entre patrimonialismo – um eufemismo sociológico para corrupção – e a concentração brutal de recursos é talvez o resultado mais evidente dessa trajetória histórica.

O próprio “jeitinho”, ou a malandragem, essa mistura de informalidade e inteligência perversa, parece apenas uma incorporação pelas camadas populares do modus operandi daqueles que habitavam a Casa Grande.

Essa é, inclusive, a tese defendida pelo sociólogo Francisco de Oliveira, em ensaio já clássico, chamado marotamente de “Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro”.

Baseando-se em noções do sociólogo alemão Norbert Elias, Chico de Oliveira mostra que as praticas de burla popular se constituíram como estratégia de sobrevivência diante da “bossa” tocada pelas elites. Frente ao ritmo ditado pela orquestra, o povo precisou aprender a dançar.

Hoje, o chamado “custo Brasil” – composto de fatores como corrupção, excesso de burocracia, ineficiência da infraestrutura, entre tantos outros – estrangula a produtividade, diminui a competitividade dos produtos brasileiros no exterior e empurra vastos setores da população para a informalidade e a precariedade.

Esse é o resultado da persistência do projeto arcaizante mencionado anteriormente, que assume nos dias atuais a forma de uma verdadeira indústria da precariedade.

A exploração da ineficiência pela via da corrupção drena o país, mas também produz milionários. Eis aí um dos mais eficientes mecanismos de concentração de renda e de reprodução de privilégios.

Mesmo aquilo que chamamos de capitalismo no Brasil hoje é um sistema baseado no tipo de extrativismo pré-moderno que configurou nossas elites e deformou nosso sistema produtivo. Os industriais da precariedade usam muitas vezes uma retórica liberal, mas sua prática é basicamente patrimonialista.

Em fins do século 19, Joaquim Nabuco defendeu que não bastava acabar com a escravidão; era preciso destruir sua obra. Ao ignorar o sábio conselho de Nabuco, a elite política que conduziu a abolição mergulhou o país na espiral de injustiça e violência hoje visível a olhos nus, sobretudo na racialização da pobreza e nos índices de mortes de jovens negros no Brasil.

O mesmo pode ser dito em relação à corrupção. Não basta lutar contra ela, é preciso também combater o seu legado: a concentração de renda e a brutal desigualdade que mancha o passado e emperra o presente do país.

*Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor de Literatura em Oxford