Por que a China aposta na língua portuguesa

O ensino da língua portuguesa encontra-se em vertiginosa expansão em universidades chinesas, e o governo de Pequim não tem medido esforços nem investimentos para liderar os estudos sobre a língua de Camões e Machado de Assis na Ásia.

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MacauVOISHMEL/AFP/GETTY IMAGES
Ex-colônia portuguesa, Macau, China, mantém placas bilíngues

O ensino da língua portuguesa encontra-se em vertiginosa expansão em universidades chinesas, e o governo de Pequim não tem medido esforços nem investimentos para liderar os estudos sobre a língua de Camões e Machado de Assis na Ásia.

O vetor dessa expansão está em Macau – cidade chinesa que foi domínio português entre 1557 e 1999. Segundo o coordenador do Centro da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau, professor Carlos Ascenso André, a crescente presença da língua em universidades chinesas é fruto de uma estratégia clara de difusão e expansão do português na China. Nos últimos dez anos, o número de universidades chinesas que ensinam português praticamente quadruplicou, passando de seis para 23 instituições.

Segundo ele, há atualmente centenas de bolsas para estudantes do interior da China virem a Macau aprender a língua, além de ações promovidas pela equipe do Instituto Politécnico para desenvolver centros de estudos em outras universidades do país.

Placas
Em Macau, os nomes de ruas e praças são apresentados em português e cantonês

Segundo Caio César Christiano, professor brasileiro contratado há um ano pelo Instituto Politécnico, “Macau assumiu a incumbência de ser o centro difusor da língua portuguesa na China. É um desejo claro de a China formar muitos professores e tradutores de língua portuguesa”.

Colônia até 1999

Macau sempre teve importância estratégica singular. Tornada domínio do Império Português em 1557, a reboque da expansão colonial lusitana na Ásia, a cidade converteu-se rapidamente em entreposto comercial e porto seguro para incursões portuguesas na região do Pacífico.

Após um motim liderado por grupos pró-Pequim nos anos 1960, foram postas em andamento negociações com as autoridades portuguesas sobre o futuro do território. Formalmente devolvida à República Popular da China em 1999, Macau é gerida atualmente por uma junta administrativa autônoma, que governará até 2049, quando a região será definitivamente integrada ao sistema administrativo chinês.

A grander maioria da população (94%) é composta por cantoneses, grupo da etnia han do sul da China, mas a presença portuguesa se faz sentir no nome de inúmeras ruas e na boca de setores da sociedade macauense que ainda falam o português, o que, segundo o censo de 2006, equivale a 2,4% da população. A administração da cidade é oficialmente bilíngue e todos os sinais e placas públicas são grafados em cantonês e português.

É justamente esse caráter híbrido e cosmopolita que faz de Macau uma área estratégica para o projeto de expansão dos estudos da língua portuguesa em território chinês. Tal expansão tem uma clara dimensão econômica e geopolítica, ligada a interesses estratégicos chineses na América Latina e, sobretudo, na África lusófona.

Cassino LisboaCHRIS MCGRATH/GETTY IMAGES
Cassinos e turismo são responsáveis pela maior parte da arrecadação de Macau

A presença chinesa em países como Angola e Moçambique é ostensiva. Nas duas últimas décadas, o volume de investimentos chineses na África cresceu mais de 20 vezes, passando de US$ 10 bilhões em 2000 para US$ 220 bilhões em 2014. Em setembro de 2016, Angola se tornou o maior fornecedor de petróleo para a China, enquanto Moçambique está entre os cinco países com maior concentração de investimentos chineses.

Interesse chinês

Nesse cenário, a China é evidentemente o país com as melhores condições para absorver o possível vácuo a ser deixado por empresas brasileiras na região, após o impacto dos escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras como Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez, todas elas com grande volume de investimentos em Angola e Moçambique.

Ano passado, como consequência dos ilícitos expostos pela Operação Lava Jato, o BNDES chegou a congelar financiamentos de pelo menos três projetos em Angola e um projeto em Moçambique, afetando contratos da Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez.

O Brasil é, ele mesmo, um foco de interesse chinês. Os investimentos chineses na América Latina cresceram nas últimas décadas de maneira rápida e consistente. Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, substituindo o primado histórico das relações com os Estados Unidos.

É preciso lembrar também que o português é uma língua global. De fato, é a terceira língua que mais cresce no mundo – atrás apenas do espanhol e do inglês. Além disso, embora seja a quarta língua mais falada do mundo em termos absolutos, é a terceira em ambientes de negócios relacionados ao mercado de óleo e gás.

Crescimento populacional

Alguns estudos conduzidos pelas Nações Unidas e publicados em 2016 no Atlas da Língua Portuguesa são reveladores. Embora o Brasil seja o país com mais falantes de português no mundo, as transformações demográficas que têm ocorrido nas últimas décadas tendem a alterar esse cenário.

Estimativas preveem que até o fim do século existam mais falantes de português na África do que no Brasil, sobretudo devido à retração no crescimento populacional brasileiro e à explosão populacional liderada por países como Angola e Moçambique. No conjunto, eles somarão cerca de 266 milhões de habitantes em 2100, ultrapassando o Brasil, com população prevista de 200 milhões.

Logo após a devolução de Macau às autoridades chinesas em 1999, havia temores de que a língua portuguesa desapareceria rapidamente da região e do próprio território chinês, como mostrou a BBC Brasil em 2002. No entanto, a política de investimentos chineses não apenas dissipou essa preocupação como garantiu que o estudo da língua ganhasse fôlego no país inteiro.

Conferência
Pesquisadores e estudiosos da língua portuguesa de universidades de todo o mundo se reuniram em Macau, China, entre 23 e 29 de julho

“A grande surpresa foi a dimensão e a qualidade do ensino da língua portuguesa na China”, afirmou Roberto Vecchi, presidente da Associação Interacional de Lusitanistas (AIL), rede de estudiosos da língua e da cultura dos países que falam português. A associação se reuniu em Macau entre os dias 23 e 29 de julho para promover um encontro entre pesquisadores de diversas universidades da Europa, Ásia, África e Américas.

A China tem atuado estrategicamente na articulação entre políticas culturais e interesses geopolíticos para afirmar-se cada vez mais como potência global.

E ao investir no ensino da língua portuguesa, Pequim reconhece a importância da língua em contexto global e aponta para oportunidades de projeção internacional através do português que têm sido negligenciadas pelo Brasil.

 

Os desafios da esquerda no Reino Unido

Os partidos progressistas precisam cooperar e batalhar por uma mudança no sistema eleitoral

por Daniel Mandur Thomaz e Rachel Randall — publicado por Carta Capital em 06/07/2017

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/os-desafios-da-esquerda-no-reino-unido

Jeremy CorbynCorbyn: ele saiu mais forte das urnas                                                                             Foto: AFP

Existe pelo menos uma coisa em comum entre as conjunturas políticas do Brasil e do Reino Unido hoje: guardadas as devidas proporções, partidos de oposição no Parlamento têm sido inábeis para desalojar do poder lideranças conservadoras que perderam a autoridade para governar.

Enquanto o governo de Michel Temer chegou a históricos 7% de aprovação há duas semanas (Datafolha), índice mais baixo dos últimos 28 anos, a primeira-ministra britânica, Theresa May, passou recentemente por um processo eleitoral que minou seriamente suas condições políticas.

Antes das eleições em 8 de junho, o Partido Conservador de May tinha 330 assentos no Parlamento, o suficiente para aprovar medidas do governo sem a necessidade de recorrer a alianças. Quando a chamada para novas eleições foi anunciada, em abril, tanto as pesquisas de opinião quanto os especialistas, incluindo os da esquerda, tinham como certo que May conseguiria ampliar ainda mais o número de assentos conservadores no Parlamento e estabelecer uma vitória esmagadora, enterrando de vez a oposição trabalhista liderada por Jeremy Corbyn.

O resultado foi, no entanto, bem diferente. Os conservadores, também chamados Tories, perderam sua maioria, vendo seu número de parlamentares reduzido para 318. Embora ainda tenham 56 assentos a mais do que os trabalhistas, não conseguiram os 326 assentos necessários para estabelecer uma maioria parlamentar.

Por outro lado, o trabalhista Jeremy Corbyn conseguiu derrotar seus detratores no seio da própria esquerda, conquistando uma importante vitória simbólica nas eleições e ganhando 30 assentos extras para o Partido Trabalhista (Labour Party). Depois das eleições, membros da própria esquerda que pareciam suspeitar da capacidade de Corbyn para liderar o partido – como o jornalista e comentarista político Owen Jones – vieram a público para se retratar e demonstrar apoio ao líder trabalhista.

Os trabalhistas lançaram em seu manifesto de maio uma ampla plataforma antiausteridade, defendendo o aumento de investimentos públicos em saúde, educação e assistência social. Essa agenda, que inclui um compromisso do partido em abolir as mensalidades em universidades, galvanizou o apoio da juventude, que foi em massa às urnas este ano. O aumento da participação dos jovens entre 18 e 24 anos no pleito foi da ordem de 21% (Ipsos Mori).

Embora Corbyn tenha grande mérito pelo avanço trabalhista nas eleições, é possível argumentar que a incompetência da conservadora Theresa May em lidar com seu eleitorado durante a campanha também teve um papel fundamental nessa equação.

A desastrada trajetória eleitoral dos conservadores contou com elementos como a expressiva mudança na abordagem em relação à política de assistência aos idosos (grande parte de seu eleitorado) e uma bizarra proposta de legalizar novamente a caça à raposa na Inglaterra.

Isso somou-se com a recusa de May em participar de debates públicos com os demais candidatos em diversas ocasiões. Isso alienou parte considerável dos eleitores que, de outra forma, provavelmente teriam votado nela.

Os paralelos com seu predecessor, David Cameron, são claros: as derrotas são resultado de uma confiança equivocada em sua força política. A arrogância de Cameron o levou a apostar o futuro das relações com a União Europeia em um referendo que pretendia, antes de mais nada, disciplinar as insurgências internas em seu próprio partido, mas que resultou na saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit.

Theresa May, por sua vez, fez um movimento demasiadamente arriscado ao chamar novas eleições este ano, apostando a maioria parlamentar de seu partido num momento crítico: as negociações para o Brexit.

Para muitos na esquerda, o aspecto mais positivo das eleições foi o total colapso da extrema-direita, representado pela queda de 10% dos votos do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), o que o deixou sem assentos no parlamento.

Os conservadores conseguiram, no entanto, assinar um acordo de cooperação com o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte (DUP), que defende a permanência da Irlanda no Reino Unido e que foi favorável à saída da Grã-Bretanha da União Europeia. No contexto político britânico, o DUP é um partido ultraconservador que se opõe ao casamento homoafetivo, legalizado no Reino Unido em 2013, ao direito ao aborto, legal desde 1967, e que conta entre seus representantes com políticos que negam até que existam mudanças climáticas em curso. A cooperação entre o Partido Conservador de May e o DUP, que possui 10 assentos no Parlamento, é a estratégia pela qual os conservadores conquistaram maioria no parlamento.

Esse acordo causou enorme controvérsia. Primeiro, porque os termos incluem uma promessa de investimento de 1 bilhão de libras na Irlanda do Norte. O acordo gerou reações imediatas de representantes da Escócia e do País de Gales, que agora cobram também mais investimentos nessas regiões.

O mais grave foi, entretanto, a reação do Sinn Fein – partido independentista que faz oposição ao DUP na Irlanda do Norte – que acusa o acordo entre conservadores e DUP de minar o chamado Good Friday Agreement, tratado assinado nos anos 90 e que garantiu o equilíbrio de forças capaz de cessar os conflitos entre separatistas e unionistas na Irlanda do Norte. Isso pode significar uma ameaça à frágil paz alcançada na região.

A capacidade dos conservadores de ganhar maioria parlamentar através de um questionável acordo com o DUP só foi possível, entretanto, devido à falta de proporcionalidade do sistema eleitoral britânico. Diferente do sistema presidencialista brasileiro, no parlamentarismo britânico não há voto proporcional em eleições legislativas, o que significa, na prática, que a proporção do voto popular recebido por um partido não se reflete necessariamente em sua representação parlamentar.

Isso ocorre porque a eleição de um candidato em seu distrito se dá por maioria simples, e os votos dirigidos a candidatos não eleitos são totalmente descartados. O voto distrital, como é chamado esse sistema, produz distorções estatísticas consideráveis, e tem favorecido sistematicamente o Partido Conservador. Por exemplo, nas últimas eleições, a proporção de votos conservadores foi apenas 2,4% maior do que trabalhistas, mas, devido às distorções do modelo distrital, os conservadores tiveram 8,6% a mais de assentos, 56 no total.

Theresa May
Theresa May foi às urnas para ter mais poder e deixou o pleito precisando dos conservadores norte-irlandeses para governar (Foto: Daniel Leal-Olivas)

As distorções do sistema eleitoral no Reino Unido se tornam ainda mais evidentes quando observamos o caso dos partidos menores. O ultraconservador DUP recebeu 0,9% dos votos, o que se converteu em 10 assentos, enquanto o Partido Verde, que conseguiu 1,6% dos votos, conseguiu apenas 1 assento no Parlamento (BBC).

Os dados percentuais tornam visível que os parlamentares do DUP, que votarão em aliança com o Partido Conservador de Theresa May, terão um poder de influência absolutamente desproporcional ao tamanho real de sua representatividade popular.

O sistema eleitoral britânico, referido nacionalmente como First-Past-the-Post (FPTP), é estruturado de forma a tornar estatisticamente mais viável que um único partido consiga a maioria parlamentar, o que garantiria mais estabilidade ao sistema político.

Nos últimos anos as limitações de tal sistema têm, no entanto, se tornado mais evidentes, particularmente com o fenômeno do aparecimento e crescimento de partidos menores, incluindo o Partido Liberal Democrata (LibDems), o Partido Verde e o já citado Ukip. Além disso, o sistema distrital britânico acabou por influenciar profundamente a cultura política local, avessa às coligações entre partidos, atitude reforçada em anos recentes pelo colapso do Partido Liberal Democrata nas eleições de 2015, depois de uma coligação desastrosa com os conservadores.

Na atual conjuntura política, a cooperação entre partidos progressistas se tornou crucial. Sobretudo em um momento onde as políticas de austeridade implementadas pelo Partido Conservador se traduzem em pressão orçamentária sobre os serviços públicos, resultando em redução de gastos com assistência e políticas públicas de bem-estar social.

A necessidade de se rediscutir o sistema distrital britânico e suas distorções de representatividade partidária, assim como o imperativo de uma aliança progressista capaz de barrar a agenda de austeridade dos conservadores, precisam estar na ordem do dia caso os setores progressistas no Reino Unido tenham ambições reais de disputar os rumos do país.

Como argumentou recentemente uma das lideranças do Partido Verde, Caroline Lucas, em termos gerais, 52% dos eleitores britânicos votaram em partidos progressistas – incluindo o Partido Verde, o galês Plaid Cymru, o Partido Nacional Escocês, o Partido Trabalhista e os Liberais Democratas. No entanto, só uma aliança progressista pluripartidária teria condições de entregar à maioria do eleitorado esse resultado.

* Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor da Universidade de Oxford

* Rachel Randall é pós-doutoranda e professora da Universidade de Oxford 

Quem tem medo da democracia?

Os setores progressistas da sociedade brasileira deveriam se reorganizar em torno de uma agenda de propostas, e não do velho personalismo

por Daniel Mandur Thomaz – publicado por Carta Capital em 02/06/2017 

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/quem-tem-medo-da-democracia

Protesto pelas Diretas Já

Foto: Lula Marques/AGPT

 

Há um esforço notório de setores minoritários da sociedade brasileira em difundir para o grande público a tese de que somente uma eleição indireta seria viável para o cenário pós-Temer.

Tenta-se, nesse sentido, convencer a classe média e os setores produtivos de que qualquer saída que inclua eleições diretas seria inconstitucional.

Os mais recentes amantes da Constituição – os mesmos que não hesitaram em relativizá-la em 2016 – querem, com esse argumento, travestir de legalismo o seu profundo medo da democracia.

Essa é apenas mais uma tese baseada no desejo indecoroso de impingir à sociedade medidas que, se submetidas ao voto popular, jamais seriam aprovadas. Foi esse mesmo desejo irresponsável e antidemocrático que mergulhou o país no caos.

Durante boa parte do ano de 2015, e até o fim de agosto de 2016, foi possível ouvir especialistas e leigos clamarem que o impedimento da presidente Dilma Roussef era a única forma de estabilizar o país. A cada passo em falso do governo, alterações no câmbio e na Bovespa eram alardeados pela imprensa como “sinais do mercado”.

A classe média comprou essa tese.

Os escândalos de corrupção, que até então não envolviam a presidente, foram usados como justificativa para alimentar a falácia de que uma conspiração palaciana envolvendo o que havia de pior na política brasileira era moralmente justificável. A presidente foi impedida num processo visto com profunda desconfiança pela imprensa internacional. E a economia não se recuperou.

Na sequência, uma nova tese foi apresentada à sociedade. O “novo” governo, apoiado por uma base reaglutinada – e respaldado por editoriais da grande imprensa – defendeu que um pacote de reformas impopulares seria o único caminho para superar a crise.

O Senado promulgou em dezembro de 2016 a PEC dos gastos. A medida foi vendida pelos governistas como uma panacéia, mas não ouve nenhuma “retomada da confiança”, como pretendido pelo governo. Obviamente, não há confiança sem segurança jurídica e estabilidade política. Golpes parlamentares custam caro e amedrontam investidores internacionais.

Em contrapartida, o que houve foi uma enxurrada de editoriais e artigos na imprensa construindo uma falsa narrativa de retomada econômica, sem nenhuma base empírica. O desespero em bancar o governo foi tão grande que até a queda da expectativa de inflação (IPCA) para perto dos 4%, resultado do desemprego e da recessão que corroem a economia, foi alardeada como uma vitória e não como um deprimente fruto da crise.

Resultado: mesmo após a aprovação da PEC do teto dos gastos em 2016, a dívida pública continua crescendo e, para além das narrativas da imprensa governista, não há melhora do quadro econômico. A tese de que apenas as reformas da previdência e trabalhista podem tirar o país da crise, mesmo que aprovadas por um governo sem legitimidade, se baseia no desejo quixotesco de setores do país que estão mais comprometidos com o ideário liberal do que com as instituições democráticas.

A esquerda brasileira foi acusada, em diferentes ocasiões, de tentar transformar o Brasil numa nova Venezuela. No entanto, foi o ultraliberalismo antidemocrático dos que defendem uma profunda reforma no Estado à revelia do voto popular que venezualizou o país.

Que o Brasil precisa de reformas (política, tributária, agrária, previdenciária) não é novidade. Mas aquelas propostas foram desenhadas para distribuir de forma absolutamente injusta o ônus da crise: os setores mais frágeis da sociedade são os que arcam mais pesadamente com tais medidas.

Sem demanda interna e em meio a uma crise de confiança, que é também resultado da insegurança política e jurídica que se instalou no país após o impeachment, não há possibilidade de recuperação

O que foi vendido para o público como um remédio amargo, acabou agravando o estado do paciente.

Uma reforma capaz de tornar a tributação mais progressiva, ou mesmo uma auditoria da dívida pública, que poderiam atacar o problema da crise por outro ângulo, sequer foram consideradas.

A questão parece ser menos uma discussão que leve em consideração a complexidade dos fenômenos econômicos e sociais, e mais um esforço por reformar o Estado brasileiro a partir da agenda política que foi derrotada nas eleições de 2014.

Agora, uma terceira tese se ensaia: a de que, com a queda do apequenado presidente, somente eleições indiretas poderiam solucionar a crise em que o país se encontra. Isso porque só pela via indireta haveria estabilidade para aprovar reformas.

Essa terceira tese é duplamente falaciosa. Não negamos que reformas estrutuais e estruturantes sejam necessárias para recolocar o país nos trilhos, mas nenhuma reforma aprovada em ambiente de tamanho descrédito e instabilidade política estabilizará o país. Reformas não irão solucionar os problemas enquanto não houver um Poder Executivo legitimado pelo voto popular.

É verdade que a Constituição prevê eleições indiretas para o caso de vacância do presidente e vice-presidente após dois anos de mandato (artigo 81). Em condições normais de pressão e temperatura políticas esse seria um caminho seguro.

No entanto, o Parlamento brasileiro passa por uma forte crise moral e de representatividade, e o descrédito do sistema político atinge seu pináculo. De acordo com levantamento da DW Brasil, divulgado em abril, o STF conduz atualmente mais de 500 investigações contra senadores e deputados federais.

Nessas condições, uma eleição indireta não seria capaz de garantir a estabilidade necessária para que o país se sustente institucionalmente até as eleições de 2018. Não há uma saída estável a curto prazo que não passe pelo voto popular.

Duas saídas pela via direta estão postas à mesa. Uma é a PEC 227/2016, do Deputado Miro Teixeira, que defende uma emenda ao artigo 81 para que eleições diretas sejam chamadas em caso de vacância do poder até 6 meses antes do término de um mandato.

A outra é a reforma do Código Eleitoral, já aprovada pelo Congresso em 2015, e que acrescenta 2 parágrafos ao artigo 224, determinando que em caso de cassação ou perda de mandato, ocorrida a mais de 6 meses de novo pleito eleitoral, deve haver eleições diretas.

O  procurador-geral da República, Rodrigo Janot, moveu em maio de 2016 uma ação de inconstitucionalidade (ADI 5.525) contra a reforma do Código Eleitoral e o caso tramita no Supremo.

É claro que reforma no Código Eleitoral foi aprovada num momento em que o PSDB ainda flertava com a possibilidade de reverter, via TSE, o resultado das eleições de 2014. Agora, no entanto, a reforma ressurge como uma possível saída para o impasse brasileiro através do Supremo Tribunal Federal.

Nos bastidores, há ceticismo entre setores progressistas em relação à saída pelo voto popular. No entanto, consideramos que, em qualquer cenário, somente as eleições diretas podem devolver ao país as condições políticas para uma repactuação nacional em torno de uma agenda para colocar o Brasil de volta num rumo positivo.

Nesse momento crucial, é importante que haja grande mobilização em torno da bandeira das eleições diretas, algo que deve transcender siglas e espectros políticos. A esquerda, por sua vez, precisa de uma agenda clara e convincente de reformas que apresentem uma alternativa objetiva às reformas propostas pelo governo.

Além disso, é provável que, para viabilizar eleições diretas, a centro-esquerda precise abrir mão do culto à personalidade de seu líder histórico. Apostar em uma coligação capaz de gerar uma nova candidatura pode gerar resistência inicial, mas a médio prazo representará uma renovação importante. Os setores progressistas da sociedade brasileira deveriam se reorganizar em torno de uma agenda, e não do velho personalismo.

Afinal, o mais importante nesse momento é devolver a normalidade democrática ao país. A esquerda, mais do que nunca, precisa mostrar que, diferente dos governistas, não tem medo da democracia.

*Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor de Literatura em Oxford

Eleição polarizada na Holanda é termômetro político da Europa

Geert Wilders, candidato da extrema-direita, acirra os ânimos em país que cresce, mas sente efeitos da austeridade

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 15/03/2017

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Yves

Wilders e Rutte, em Roterdã, durante debate: o atual premiê promete não realizar um governo de parceria com o extremista (Yves Herman / AFP) 

 

O ano de 2017 será decisivo para o futuro da Europa. Na sequência do Brexit e das eleições norte-americanas, os próximos meses serão marcados por eleições em países chave para a estabilidade do projeto europeu.

Com a proximidade das eleições na França em abril e na Alemanha em setembro, a disputa eleitoral na Holanda, que ocorre nesta quarta-feira 15, emerge como uma espécie de termômetro das tensões políticas que marcarão 2017.

As eleições decidirão quantos assentos no Parlamento holandês os partidos políticos disputando o pleito poderão ocupar. Esse processo é crucial para a escolha do primeiro-ministro, que se dá por voto indireto.

O parlamentarismo que vigora na Holanda é marcado por intensa proporcionalidade, o que significa, em termos gerais, ser extremamente improvável que um partido consiga a maioria absoluta das cadeiras do Parlamento. É imprescindível que os partidos eleitos construam coalizões capazes de garantir maioria. Isso viabiliza a governabilidade e permite que um gabinete ministerial seja formado a partir das indicações de um membro eleito pelo próprio Parlamento.

Num sistema político extremamente complexo, 28 partidos holandeses disputam 150 assentos no Parlamento. Quatro partidos lideram as pesquisas até agora. O partido de centro-direita do atual primeiro-ministro Mark Rutte (VVD) disputa ombro a ombro com o PVV, do populista de extrema-direita Geert Wilders.

Atrás deles, por alguns pontos percentuais, vêm o CDA, partido democrata-cristão, e o GL, a esquerda verde, liderada pelo jovem Jesse Klaver, que aos 30 anos é a grande aposta de renovação da esquerda holandesa.

Para Karola Vos, 33 anos, moradora da cidade de Utrecht, as eleições deixaram ainda mais clara a polarização da sociedade holandesa: “As pessoas são cada vez mais radicais na maneira em que expressam suas opiniões”. Perguntada sobre como vê o país nos próximos cinco anos, não parece muito otimista: “Acho que as pessoas estarão ainda mais insatisfeitas com o sistema, com a política em geral e em conflito entre si”.

Mas, de onde vem esse pessimismo? A economia holandesa não vai mal. Os índices mostram que o país se recuperou de maneira efetiva da crise de 2008. De acordo com o CPB, o instituto de pesquisa em políticas econômicas da Holanda, o PIB do país cresceu 1,8% em 2016 e a projeção para 2017 é de 2,0%.

A taxa de desemprego no ano passado ficou em 6,5%, com projeção de queda para 6,3% em 2017. Se comparado ao desemprego de 7,4% em 2014, o cenário atual é de visível melhoria das condições econômicas. Por que os holandeses parecem insatisfeitos e apostam em saídas arriscadas como o populismo de extrema-direita de Geert Wilders?

A resposta para a insatisfação e a descrença dos holandeses pode ter vindo do remédio para a crise de 2008: as medidas de austeridade e a maneira como elas afetaram a população. Embora o sistema de seguridade social continue funcionando, os serviços de saúde e assistência social sofreram inúmeros cortes na Holanda. Os mais atingidos foram idosos e setores mais fragilizados da sociedade.

A elite política holandesa tentou se proteger dos efeitos eleitorais desse impacto social acusando os burocratas de Bruxelas – responsáveis por desenhar as políticas econômicas anticrise implementadas em vários países da União Europeia. Por outro lado, a extrema-direita capitaneada por Geert Wilders buscou um bode expiatório menos abstrato e mais visível aos olhos do holandeses: os imigrantes.

Daniel Schiavini, brasileiro naturalizado holandês que vive no país há 9 anos e trabalha como programador numa multinacional de softwares, vê com preocupação o que está em curso na sociedade holandesa: “A economia pode até crescer, mas o dinheiro não está indo para quem mais precisa.”

Para ele, o impacto do discurso de ódio aos imigrantes propagado pela extrema-direita será intenso: “As pessoas estão bravas com a situação e Geert Wilders conseguiu colocar a culpa de tudo nos imigrantes, o que acaba criando um clima maior de intolerância”.

Os dados empíricos mostram, no entanto, que a entrada de novos imigrantes na Holanda foi reduzida pela metade após acordos entre a União Europeia e a Turquia para fechar rotas usadas por refugiados vindos do Oriente Médio.

A imigração continua um assunto delicado. A Holanda é um país de 17 milhões de pessoas, onde aproximadamente 3,8 milhões são imigrantes. As tensões culturais entre imigrantes não europeus e a população local é constantemente explorada por grupos de extrema-direita.

A extrema-direita

Embora a imagem internacional da Holanda seja a de um país progressista, os últimos anos têm sido de avanço da extrema-direita capitaneada pelo Partido da Liberdade (PVV), liderado por Wilders.

No ano passado, ele foi condenado pela justiça holandesa por incitação ao ódio contra imigrantes depois de uma aparição pública em que perguntava a seus seguidores se eles queriam mais ou menos [imigrantes] marroquinos no país, “menos, menos”, gritaram pessoas da plateia.

Wilders vem promovendo uma espécie de cruzada anti-islâmica e anti-imigração. Ele propõe, entre outras medidas, fechar todas as mesquitas do país e proibir o uso de véus em espaços públicos.

Segundo ele, o islã não é uma religião, mas uma ideologia antiocidental. Isso, obviamente, o coloca em rota de colisão não apenas com os imigrantes de origem muçulmana, mas com a própria tradição de tolerância e multiculturalismo que a Holanda projetou para si no cenário internacional.

Mesmo assim, a retórica xenófoba e racista de Geert Wilders magnetizou vastos setores da sociedade holandesa, fragilizados pela crise econômica e pelo sentimento de descrença em relação à política tradicional.

Após sua condenação por incitação ao ódio, vários políticos de partidos tradicionais de direita, como o atual primeiro-ministro Mark Rutte (VVD), vieram a público para dizer que não trabalhariam com Wilders em uma futura coalizão.

A recusa da direita tradicional de se coligar com ele significa, na prática, que, mesmo que seu partido seja o mais votado nas eleições – algo que pode ocorrer de acordo com as pesquisas –, a possibilidade de ele se tornar o primeiro-ministro é muito remota. Sem se tornar parte de uma coalizão com maioria parlamentar, seu poder de influência na formação do novo gabinete ministerial é pequeno.

Klaver em entrevista em 14 de março: ele pode ajudar a renovar a esquerda holandesa

O sucesso eleitoral de Wilders deixa claro que, na Holanda e na Europa, o gênio do populismo está fora da garrafa. “Wilders já é o político mais influente no país, antes de ganhar ou perder as eleições”, diz Patrícia Schor, pesquisadora da Universidade de Utrecht. Segundo ela, o impacto da sua retórica foi capaz de catalizar sentimentos que já existiam na sociedade holandesa: “Wilders alargou a fronteira do que é considerado ético, possível e responsável no espaço público. Naturalmente, ele não inventou a xenofobia e o racismo na Holanda. Astuta e antiteticamente, ele faz uso de sentimentos de intolerância já muito presentes na sociedade holandesa.”

Segundo a historiadora Marianne Wiesebron, da Universidade de Leiden, a retórica de Wilders produziu uma guinada conservadora no debate público, radicalizando o discurso: “Os partidos de centro-direita certamente foram ainda mais para a direita para se aproximarem dos eleitores de Wilders, especialmente em questões como a imigração.” 

A aposta da esquerda      

Os partidos tradicionais de esquerda na Holanda passam por uma profunda crise de identidade, que tem como resultado imediato a perda de parte considerável do seu eleitorado.

O Partido Trabalhista holandês (PvdA), tradicional eixo de centro-esquerda, se desgastou nos últimos anos ao aderir à coalizão de centro-direita que governa o país atualmente: perdeu, assim, sua identidade histórica.

O Partido Socialista holandês, o SP, com agenda mais à esquerda, parece ter perdido parte da capacidade de dialogar com os anseios do eleitorado de esquerda, e aparece nas pesquisas recentes com cerca de 9% das intenções de voto.

A novidade no cenário parece ser Jesse Klaver, do partido Esquerda Verde (GL). Segundo a historiadora Marianne Wiesebron, “O Groen Links (Esquerda Verde) está subindo incrivelmente nas sondagens em grande parte pelo apelo de Jesse Klaver, por ser jovem, de esquerda e pró-europeu”.

O jovem de 30 anos, com descendência marroquina e indonésia, aposta no discurso da sustentabilidade: propõe, entre outras coisas, reformas fiscais para cobrar mais impostos de empresas que poluem e redistribuir renda para setores mais fragilizados da sociedade.

Chamado por alguns de  “Jessiah”, um trocadilho com seu nome (Jesse) e a palavra “messias” (messiah), Jesse Klaver parece ser a grande aposta da esquerda. Seu carisma arrebanha uma grande quantidade de jovens, até então desacreditados. Embora seu partido tenha crescido muito nas intenções de voto, em grande parte graças a sua atuação, sua capacidade de liderança será posta à prova no Parlamento diante da crise da esquerda holandesa e mundial.

Para a pesquisadora Patricia Schor, os desafios são imensos: “Não acredito que a Esquerda Verde consiga fazer frente a este conservadorismo que ganhou proeminência na Holanda, como em vários países europeus. Mas gostaria muito de ser contrariada pelo resultado das eleições.”

 

No ano de seu centenário, textos inéditos encontrados na Inglaterra revelam aspecto desconhecido de Antônio Callado

Em 26 de janeiro de 2017, o escritor brasileiro Antônio Callado completaria 100 anos se estivesse vivo.

por Daniel Mandur Thomaz, publicado pela BBC Brasil em 30/01/2017 e republicado pela Folha de São Paulo

BBC: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38794242

Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/01/1854147-textos-ineditos-de-antonio-callado-revelam-faceta-desconhecida-do-autor.shtml

Callado em 1972

Antônio Calado, cuja morte fez 20 anos no sábado, escreveu peças para teatro e romances consagrados como “Quarup”

Considerado por críticos como o americano Raymond L. Williams como um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século 20, a obra de Callado permanece mais atual do que nunca.

Mais do que isso, o autor brasileiro continua surpreendendo o público com novidades. A descoberta, em arquivos britânicos, de peças de teatro escritas por Callado para serem transmitidas por rádio durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz à tona um uma face praticamente desconhecida do autor.

Tais peças têm o potencial de lançar uma nova luz sobre sua obra e seu período de formação intelectual no Reino Unido, país em que viveu como correspondente de guerra entre 1941 e 1947.

Peças para teatro

Antônio Callado estreou oficialmente como dramaturgo em 1951, com a peça O Fígado de Prometeu, mas ganhou notoriedade mesmo com Pedro Mico, em 1957. Ele foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros.

A partir de Pedro Mico, Callado escreveu uma série de textos de teatro com personagens e temas que discutem, direta ou indiretamente, o racismo no Brasil, como Uma Rede para Iemanjá (1961), O Tesouro de Chica da Silva (1962) e A Revolta da Cachaça (1983). No entanto, a descoberta recente em arquivos britânicos revela que o autor já escrevia peças nos anos 40, algo ignorado por grande parte dos críticos e biógrafos até então.

Antonio Callado em 1941

Callado chegou à Inglaterra em 1941 – ano marcado por bombardeios alemães sobre Londres

 

A vida de Antônio Callado se confunde de forma fascinante com a história do século 20. Como jornalista, cobriu eventos como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1968), essa última como enviado do Jornal do Brasil em 1968.

No início dos anos 60, escreveu uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo “indústria da seca”.

‘Quarup’

Como romancista, Callado começou a pavimentar seu caminho ainda em 1954, com Assunção de Salviano, que tem como pano de fundo justamente os conflitos fundiários do Nordeste.

No entanto, é com o romance Quarup, de 1967, que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos como o romance mais importante da década de 60, Quarup – nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu – tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas, se converte em militante contra a ditadura militar (1964-1985).

Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob as chamadas “reformas de base”, colocadas como bandeira do governo João Goulart e barradas abruptamente pelo golpe militar de 1964.

A partir dos anos 1970, o escritor produziu romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo no Brasil e da incapacidade das esquerdas de produzir um projeto de enfrentamento da ditadura que oferecesse uma saída estruturada para o país. Tais questões são abordadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).

Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do país, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antônio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista.

Callado na BBC em 1942

Último romance, “Memórias de Aldenham House” (1989), explora o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando trabalhou como jornalista na BBC

BBC e Segunda Guerra

Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, Callado assinou contrato com a então jovem Seção Latino-americana da BBC, que começara a transmitir em português e espanhol apenas alguns anos antes, em 1938. Depois de atravessar o Atlântico em plena guerra, Callado pôs os pés pela primeira vez na ilha que mudaria sua vida: a Grã-Bretanha.

Vivendo em Londres como redator e tradutor da BBC – e um dos pioneiros do que viria a ser mais tarde a BBC Brasil – Antônio Callado deparou-se pela primeira vez com os dramas da guerra. Vivenciou de perto os bombardeios sobre a cidade, o racionamento de comida e de itens básicos como papel, ao mesmo tempo em que observou a fantástica capacidade britânica de união nacional em torno da resistência ao avanço nazista.

Na Inglaterra, Callado também conheceu Jean Maxine Watson, funcionária britânica da BBC com quem se casou em 1943. O casal retornou ao Brasil em 1947, onde tiveram três filhos, ficando juntos até o falecimento de Jean Maxine, em 1973. Antônio Callado ainda viveria por mais duas décadas. Ele morreu em 28 de janeiro de 1997.

Em entrevista para a crítica literária Ligia Chiappini, ainda no início dos anos 80, Callado revela que foi na Inglaterra, durante a guerra, que descobriu sua “paixão pelo Brasil”: “De repente, começou a bater aquela saudade do Brasil. Tão grande…”.

A saudade e a descoberta do amor pela terra natal fariam Callado percorrer o Brasil inteiro, anos mais tarde, já como renomado jornalista do Correio da Manhã.

Sua estadia na Inglaterra teve também um papel essencial na sua formação intelectual. Em entrevista concedida ao sociólogo Marcelo Ridenti, em julho de 1996, Callado afirma: “A Inglaterra, para mim, foi mais – o tempo em que eu estive na BBC, cinco anos da minha vida, quando eu era jovem, tinha vinte e poucos anos, aquilo marca – foi para mim como uma educação. Uma universidade que cursei”.

Na comparação de entrevistas que concedeu ao longo da vida com aspectos autobiográficos explorados por Callado em seu último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é possível perceber também que foi durante sua estadia na Inglaterra que o autor conheceu o trabalho dos dois escritores que teriam, a partir de então, grande influência sobre a sua escrita: o romancista britânico Graham Green (1904-1991) e o modernista irlandês James Joyce (1882-1941).

A influência de seus anos na Inglaterra foi duradoura e acompanhou Callado até o fim. Quando faleceu, em janeiro de 1997, o obituário publicado na revista Isto É foi intitulado “Um Gentleman Indignado”, referência à influência britânica, por um lado, mas também a seu engajamento político na luta contra a ditadura (1964-1985). Seu amigo Nelson Rodrigues disse certa vez, em forma de pilhéria, que Callado era “o único inglês do mundo real”.

Roteiros inéditos

Foi em busca de rastros deixados por Antônio Callado na Inglaterra, que iniciei uma pesquisa nos arquivos da BBC ainda em 2014. O resultado foi a descoberta de uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antônio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.

As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e tem o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e sobre o seu processo de formação intelectual. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda esse ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.

Observando peças de rádio-drama como Jean e Marie, transmitida pela BBC em 1943, é possível perceber que vários dos temas e questões que Callado desenvolverá em seus romances dos anos 50, 60 e 70 – como as relações entre misticismo e revolução, entre arte e transformação social e o papel do artista engajado – já aparecem problematizados nas suas peças dos anos 40. Isso revela como sua experiência na Inglaterra durante a guerra impactou sua obra.

Outro aspecto interessante revelado pelas peças é a influência da linguagem do rádio e da cultura de massa dos anos 40 nas obras de Callado. Nesse sentido, seu trabalho como redator e tradutor na BBC foi essencial, já que foi lá que o autor entrou em contato pela primeira vez com a linguagem do rádio, algo que teria posteriormente grande impacto sobre seu estilo.

Callado era um escritor profundamente comprometido com o Brasil. Sua estadia como jornalista na Inglaterra, quando jovem, o ajudou a olhar para seu próprio país por um outro ângulo. Reler, hoje, os livros de Antônio Callado é uma forma instigante de olhar para a história recente do Brasil e para sua relação com o mundo.

A obra de Callado é atual porque não perdeu a capacidade de nos surpreender, combinando o cosmopolitismo do autor com seu olhar ao mesmo tempo afiado e compassivo para o país que ele tanto amava: o Brasil.

*Daniel Mandur Thomaz é professor e pesquisador da Universidade de Oxford

 

 

100 anos de Antonio Callado

“Para além do seu centenário, são os tempos incertos pelos quais passa o País que fazem da releitura da obra de Callado algo tão necessário.”

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 26/01/2017

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/100-anos-de-antonio-callado

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Considerado pelo crítico Raymond L. Williams um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século XX, o escritor brasileiro Antonio Callado (1917-1997) completaria hoje, se estivesse vivo, 100 anos.

Inúmeros eventos marcarão este ano do centenário do romancista, dramaturgo e jornalista: o lançamento de um novo documentário dirigido por Emília Silveira, uma sessão comemorativa na Academia Brasileira de Letras prevista para março e uma conferência sobre sua vida e obra na Universidade de Oxford, Inglaterra, no dia 4 de fevereiro.

Para além do seu centenário, são os tempos incertos pelos quais passa o País que fazem da releitura da obra de Callado algo tão necessário. Trata-se de um autor profundamente comprometido com o Brasil, o que adiciona à sua obra um sentindo ainda maior.

Callado foi um homem cuja vida se mesclou de forma fascinante com a história do século XX. Enquanto jornalista, cobriu eventos que moldaram o mundo contemporâneo, como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1975), esta última como enviado do Jornal do Brasil em 1968.

Enquanto dramaturgo, foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros. Sensibilizado pelo Teatro Experimental Negro iniciado por Abdias do Nascimento em 1944, Callado escreveu, a partir dos anos 50, peças com personagens e temas que problematizam direta ou indiretamente o racismo no Brasil, como Pedro Mico (1957), Uma rede para Iemanjá (1961), O tesouro de Chica da Silva (1962) e a Revolta da Cachaça (1983).

Escritor de mão cheia, estreou como romancista em 1954, com Assunção de Salviano, história cujo enredo tem como pano de fundo os conflitos fundiários do Nordeste nos anos 50. No início dos anos 60, Callado escreve uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo “indústria da seca”.

É com Quarup (1967) que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos o romance mais importante da década de 60, Quarup – nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu – tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas no Brasil profundo, se converte em militante contra a ditadura (1964-1985).

Em passagem antológica, o protagonista, padre Nando, se envolve numa expedição para contatar tribos isoladas e demarcar o centro geográfico do Brasil. Ao fincarem o marco no lugar que acreditam ser o centro do País, os personagens descobrem que o solo onde pisavam era, em verdade, um formigueiro colossal, capaz de devorá-los.

A cena, uma recriação ficcional da expedição original realizada pelos irmãos Villas-Boas em 1958, é uma belíssima metáfora da busca incessante de um povo por sua identidade. Uma longa tradição de pensadores brasileiros, de Oliveira Vianna a Darcy Ribeiro, passando por nomes como Sergio Buarque, Caio Prado Jr. e o próprio Callado, buscaram ao longo do século XX desvendar a alma brasileira, interpretar a identidade nacional e cultural do País e produzir sentido sobre sua trajetória histórica.

Quarup é parte do esforço de Callado por entender o Brasil, com seus enormes dilemas e contradições. O romance é uma reflexão sobre a trajetória recente de uma gente que se fez como povo através de processos históricos brutais, banhados em sangue negro e indígena, e que é pobre embora viva em meio a uma imensa abundância de recursos naturais.

O que Callado parece querer apontar com a imagem de um formigueiro no coração do Brasil é que a identidade de um país não é algo dado e que, portanto, possa ser descoberto, desvendado. A identidade brasileira é movediça, como um formigueiro, e quem tenta fixá-la pode ser por ela devorado. Enfim, o Brasil de Antonio Callado não precisa ser descoberto, ele tem é que ser inventado, construído pelos milhares de brasileiros que, com seu trabalho e movimento, são a matéria desse solo.

Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional-popular acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob a bandeira das chamadas reformas de base, barradas abruptamente pelo golpe de 1964.

A partir dos anos 1970, o escritor produzirá romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo e da tortura no pós-1968, mas também da incapacidade de articulação de um projeto de enfrentamento da ditadura que produzisse uma saída estruturada para o país. Tais questões são problematizadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).

Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do País, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antonio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista da BBC.

Aldenham House é o nome da mansão construída por uma família aristocrática inglesa no século XVII e que abrigou, em plena Segunda Guerra Mundial, os departamentos de transmissão internacional da BBC.

No romance de Callado, um jornalista brasileiro foge da perseguição política do Estado Novo de Vargas (1937-1945) e torna-se correspondente de guerra, convivendo com outros exilados na seção da BBC responsável por transmissões em português e espanhol para a América Latina.

Com o fim da guerra em 1945, quase todas as personagens do romance retornam a seus países de origem e são presas ou mortas por regimes ditatoriais. Embora reproduza na forma da narrativa uma sátira dos romances policiais dos anos 1930 e 40, Callado parece sugerir que, na trama política da América Latina, o assassino não é o mordomo, como nos clichés detetivescos, mas sim a tradição autoritária dos países da região.

Foi em busca de rastros deixados por Antonio Callado na Inglaterra que este autor iniciou uma pesquisa nos arquivos da BBC em 2014 e descobriu uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antonio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.

As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e têm o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e o seu processo de formação intelectual na Inglaterra. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda este ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.

Aos 100 anos, Antonio Callado continua nos oferecendo novidades. Seu trabalho parece mais atual do que nunca. Através de seus romances, peças e reportagens é possível compreender melhor a trajetória recente do país, algo essencial para que possamos repensar nossos rumos e superar nossas contradições. Afinal, como disse o crítico Davi Arrigucci, um país que já produziu homens como Antonio Callado não pode desistir de ser alguma coisa.

A indústria da precariedade no Brasil

“A corrupção é apenas a ponta do iceberg, o aspecto mais visível de um mecanismo de exploração da miséria que transforma a ineficiência dos serviços públicos em um grande negócio”

por Daniel Mandur Thomazpublicado por Carta Capital em 20/12/2016

https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/a-industria-da-precariedade

Em 1959, o jornalista e romancista Antônio Callado escreveu uma série de reportagens seminais para o jornal Correio da Manhã. Nelas, denunciava a exploração política da seca e os conflitos agrários no nordeste, fixando na linguagem corrente a expressão “indústria da seca”.

Callado usou o termo para caracterizar a forma de atuação de forças políticas locais capazes de explorar a tragédia da seca para obter vultuosos recursos federais, que acabavam desviados para fins particulares.

De lá para cá, algumas coisas mudaram no Brasil, muitas outras não. O que se evidencia nos escândalos envolvendo empreiteiras, grandes empresários e políticos poderosos em 2016 é que alguns elementos enxergados por Callado em 1959 não apenas continuam atuantes, mas parecem ter se tornado ainda mais operacionais.

Nesse contexto, a corrupção é apenas a ponta do iceberg, o aspecto mais visível de um mecanismo de exploração da miséria que transforma a ineficiência dos serviços públicos em um grande negócio, uma verdadeira indústria da precariedade.

Protesto contra a corrupção

O caso do Rio de Janeiro ilustra bem essa história.

A operação Calicute, que prendeu o ex-governador Sérgio Cabral, revelou um esquema de propina milionário ligando o governo do estado, nas mãos do PMDB desde 2003, e empreiteiras como a Andrade Gutierrez e a Carioca Engenharia. O esquema envolvia o pagamento de mesadas das empresas ao governador e seus correligionários, em troca de fraudes em licitações com o estado.

Entre as operações de fraude, destacam-se desvios de verbas federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recursos para reformas no Maracanã, tendo em vista a Copa do Mundo.

A Polícia Federal e o Ministério Público estimam que, apenas entre 2007 e 2014, as propinas somem 220 milhões.

O caso da construção do Arco Metropolitano é emblemático. A primeira fase do projeto, entregue em 2014, tinha como objetivo diminuir os engarrafamentos em gargalos urbanos como a ponte Rio-Niterói e a via Dutra, além de fornecer acesso expresso a pontos estratégicos de desenvolvimento econômico, como o Porto de Itaguaí e o futuro polo petroquímico de Itaboraí, o COMPERJ.

Obviamente, não foi isso o que foi entregue.

No dia 15 de agosto de 2015, o jornal O Dia publicou matéria intitulada “A estrada do descaso”, onde denunciava que a rodovia, inaugurada então há um ano, estava “sitiada por mato, buracos e violência”.

Artigos de 2015 em quase todos os veículos da imprensa nacional são parecidos: denunciam os problemas de estrutura, conservação e ressaltam que a obra, orçada a 965 milhões em 2008, acabou custando 1,9 bilhão. Isso pelos 71 quilômetros entregues em 2014.

Nada é novo aqui. Seria possível citar milhares de obras como o Arco Metropolitano: ruas, estradas, escolas, casas populares, hospitais, sistemas de saneamento e transporte público.

Para cada tragédia brasileira, pequena ou grande, há um milionário. A precariedade é um excelente negócio para alguns grupos políticos e para grandes empresários de setores como transporte, construção civil e toda a sorte de serviços imagináveis, fornecidos ao Estado através de terceirização.

A narrativa que se tem difundido nos veículos de imprensa associa fortemente os escândalos de corrupção ao estado, mas geralmente evita mencionar o papel da fina flor do empresariado brasileiro, sem o qual nada disso seria possível.

Na indústria da precariedade, a corrupção é o princípio operacional, o modus operandi. A prática, no entanto, é tão velha quanto as elites brasileiras, que a empregam sistematicamente há muito tempo.

Trata-se de um mecanismo extremamente eficiente de acumulação de bens e de perpetuação de privilégios. Nesse aspecto, o Brasil é muito eficiente: o país se constituiu historicamente como um grande empreendimento extrativista e vastos setores da população são usados como lenha para manter acesa as caldeiras desse engenho.

O arcaísmo como projeto 

Ainda no período colonial brasileiro, uma pequena elite mercantil se constituiu mediante atuação em um mercado imperfeito, “não regulado pela lei de oferta e procura, mas sim por privilégios obtidos na esfera política”, como ressaltam os historiadores econômicos João Fragoso e Manolo Florentino.

Em O Arcaísmo como projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, os autores mostraram como o sistema produtivo na colônia operava por mecanismos deliberadamente rudimentares de produção agrícola, possibilitados pelo latifúndio e pela farta – e relativamente barata – oferta de mão de obra escrava.

O sistema econômico era, portanto, organicamente articulado a uma hierarquia social profundamente excludente e a um ideal aristocrático que inviabilizava a dinamização das atividades econômicas.

Não foi por acaso que o tripé baseado em escravidão, latifúndio e exportação de bens primários foi mantido à mão de ferro como o modelo dominante. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, em 1888, mas o sistema oligárquico que promoveu a transição para a República em 1889 parecia-se muito com o que existia antes e com o que se produziu depois.

Embora o século 20 tenha visto transformações profundas na configuração do país, certamente pela via da modernização conservadora da Era Vargas (1930-45) e pelo desenvolvimentismo dos anos JK (1956-1961), os aspectos estruturais que configuraram as relações entre estado, sistema produtivo e elites nacionais produziram marcas profundas.

A articulação entre patrimonialismo – um eufemismo sociológico para corrupção – e a concentração brutal de recursos é talvez o resultado mais evidente dessa trajetória histórica.

O próprio “jeitinho”, ou a malandragem, essa mistura de informalidade e inteligência perversa, parece apenas uma incorporação pelas camadas populares do modus operandi daqueles que habitavam a Casa Grande.

Essa é, inclusive, a tese defendida pelo sociólogo Francisco de Oliveira, em ensaio já clássico, chamado marotamente de “Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro”.

Baseando-se em noções do sociólogo alemão Norbert Elias, Chico de Oliveira mostra que as praticas de burla popular se constituíram como estratégia de sobrevivência diante da “bossa” tocada pelas elites. Frente ao ritmo ditado pela orquestra, o povo precisou aprender a dançar.

Hoje, o chamado “custo Brasil” – composto de fatores como corrupção, excesso de burocracia, ineficiência da infraestrutura, entre tantos outros – estrangula a produtividade, diminui a competitividade dos produtos brasileiros no exterior e empurra vastos setores da população para a informalidade e a precariedade.

Esse é o resultado da persistência do projeto arcaizante mencionado anteriormente, que assume nos dias atuais a forma de uma verdadeira indústria da precariedade.

A exploração da ineficiência pela via da corrupção drena o país, mas também produz milionários. Eis aí um dos mais eficientes mecanismos de concentração de renda e de reprodução de privilégios.

Mesmo aquilo que chamamos de capitalismo no Brasil hoje é um sistema baseado no tipo de extrativismo pré-moderno que configurou nossas elites e deformou nosso sistema produtivo. Os industriais da precariedade usam muitas vezes uma retórica liberal, mas sua prática é basicamente patrimonialista.

Em fins do século 19, Joaquim Nabuco defendeu que não bastava acabar com a escravidão; era preciso destruir sua obra. Ao ignorar o sábio conselho de Nabuco, a elite política que conduziu a abolição mergulhou o país na espiral de injustiça e violência hoje visível a olhos nus, sobretudo na racialização da pobreza e nos índices de mortes de jovens negros no Brasil.

O mesmo pode ser dito em relação à corrupção. Não basta lutar contra ela, é preciso também combater o seu legado: a concentração de renda e a brutal desigualdade que mancha o passado e emperra o presente do país.

*Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor de Literatura em Oxford

O Brasil visto de cá.

por Daniel Mandur Thomaz.

Publicado por Carta Capital em 22/11/2016 – http://www.cartacapital.com.br/blogs/o-brasil-no-mundo/o-brasil-visto-do-exterior

Skidmore: pioneiro nos Estudos Brasileiros

Na Queen’s University Belfast, Irlanda do Norte, uma das mais respeitadas universidades do Reino Unido, foi possível assistir e participar neste mês de novembro de uma ação coletiva das mais prementes: colocar o Brasil sob o holofote.

Brazil in the Spotlight (o Brasil sob o holofote) foi justamente o nome do evento organizado pela Rede Europeia de Brasilianistas de Análise Cultural (Rebrac), onde miríades de questões importantes foram debatidas, da difusão do livro e da literatura brasileira no exterior ao impacto das narrativas sobre a crise política e econômica do Brasil na imprensa internacional. Mas por que o Brasil deveria prestar mais atenção ao que associações como a Rebrac têm a dizer?

Os brasileiros se surpreenderiam com o interesse e a paixão de pesquisadores de várias nacionalidades dedicados a temas brasileiros. Surpreenderiam-se também, sobretudo, com as contribuições daqueles que olham o Brasil por outros ângulos, com um distanciamento que não é apenas geográfico, e que pode apontar caminhos para além dos falsos binarismos que têm caracterizado algumas análises sobre o País hoje.

Os brasilianistas, pesquisadores (brasileiros ou não) que se dedicam a estudar aspectos do Brasil, não são em grande número, mas estão certamente enraizados nas melhores instituições da Europa e dos Estados Unidos. Há uma razão histórica para isso.

Como campo de pesquisa, os Estudos Brasileiros (Brazilian Studies) ganharam visibilidade na comunidade acadêmica internacional em fins dos anos 1950 e durante os anos 60, sobretudo no mundo anglo-saxão (EUA e Grã-Bretanha), embora países como França e Alemanha também tenham tido protagonismo.

Num contexto marcado pela Guerra Fria, os Estados Unidos e seus parceiros do dito bloco ocidental tinham interesses estratégicos e geopolíticos muito nítidos a serem defendidos na América Latina, o que envolvia monitorar uma área caracterizada por grandes mercados em potencial e abundância de recursos naturais.

Nesse momento, o reconhecimento das particularidades linguísticas, sociais e culturais do Brasil fez com que alguns especialistas talentosos fossem incentivados por bolsas e financiamentos de pesquisa a se dedicar especificamente ao País. Os Estudos Brasileiros foram, dessa forma, se autonomizando em universidades e centros de pesquisa pelo mundo. O campo foi se constituindo e, com ele, a figura do brasilianista.

Devido a essa origem ligada a disputas geopolíticas internacionais, o termo “brasilianista” adquiriu certa aura de suspeita entre acadêmicos brasileiros, ainda mais acentuadamente depois do golpe militar de 1964, quando a hoje documentada participação norte-americana era ainda considerada por alguns como “paranoia das esquerdas”.

A imagem dos brasilianistas foi mudando, no entanto, devido à contribuição decisiva que tiveram para a compreensão de aspectos da história, da política, da economia e da cultura brasileiras. Além disso, a atuação de alguns deles foi não apenas seminal em seus campos de pesquisa, mas também progressista.

Um caso emblemático é o do historiador norte-americano Thomas Skidmore, falecido em junho deste ano. Tendo passado por Oxford nos anos 50, Skidmore doutorou-se em Harvard em 1960 e em 1967 publicou uma obra que se consolidou como leitura fundamental sobre o Brasil, dentro e fora do país.

Traduzida em português como Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, a análise cobre o período crucial de 1930 à 1964 com prosa instigante e uso brilhante das fontes, o que faz com que o livro continue sendo parte integrante da bibliografia de cursos universitários de História do Brasil ainda hoje.

Como intelectual, em pelo menos duas ocasiões teve atritos com a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Em 1970, Skidmore assinou com outros brasilianistas uma carta aberta denunciando a prisão política do historiador marxista Caio Prado Júnior e criticando a perseguição de acadêmicos e intelectuais no Brasil. Como represália, o governo brasileiro lhe negou o visto de pesquisador para dar um curso na Unicamp no verão de 1970. Em 1984, já em pleno período da distensão, Skidmore foi convocado a comparecer na Polícia Federal e ameaçado de extradição por criticar a situação política do Brasil.

Estudiosos do Brasil no exterior, brasileiros ou não, progressistas ou não, têm contribuído de maneira silenciosa mas constante para a sensibilização internacional sobre o Brasil e as questões que afetam o País. Os cursos oferecidos por esses professores e pesquisadores em suas respectivas instituições e países formam anualmente inúmeros especialistas em áreas como História, Economia, Sociologia, Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

Os graduados e pós-graduados formados nesses centros de estudo frequentemente ocupam posições de relevância estratégica internacional: embaixadas, universidades, instituições de pesquisa e de fomento, órgãos governamentais e organizações internacionais de toda a espécie e, claro, veículos de imprensa internacional.

Recentemente, em meio à crise política e às confabulações parlamentares que levaram ao controverso processo de impeachment no Brasil, as diferenças entre a cobertura da imprensa internacional e da imprensa local se tornaram gritantes.

As narrativas sobre a crise em jornais como The New York Times (EUA), The Guardian(Reino Unido), Der Spiegel (Alemanha) ou Le Monde (França) contrastaram significativamente com a abordagem da grande imprensa brasileira, fato que foi explorado por vários analistas.

A questão é que, diferente do que ocorria há algumas décadas, a imprensa internacional não reproduz mais apenas os eventos e abordagens dados pelo noticiário local. Cada vez mais, veículos jornalísticos de fora do País contam com correspondentes em locus, muitas vezes com formação e especialização em Estudos Brasileiros ou Latino-americanos.

A imprensa internacional e as agências de notícias contam geralmente com profissionais especializados ou, pelo menos, com consultores que são especialistas em temas brasileiros.

Isso é reflexo, entre outras coisas, do desenvolvimento e aprofundamento de pesquisas sobre o Brasil em universidades europeias e norte-americanas, o que produz uma maior capacidade entre estrangeiros de analisar os fenômenos sociais brasileiros e de desenvolver abordagens descoladas da narrativa hegemônica da grande mídia nacional.

Obviamente, isso não significa que os brasileiros devam aceitar passivamente as narrativas construídas sobre o Brasil no exterior. Infelizmente, ainda é possível encontrar estereótipos e leituras equivocadas em matérias da imprensa internacional. Desmistificar visões estereotipadas e desarmar o foco no “exotismo” é um trabalho constante e necessário para os que pesquisam e estudam o Brasil fora do País.

O trabalho de pesquisadores dedicados a temas brasileiros tem, entretanto, uma importância crucial na formação de quadros especializados sobre o País no exterior e isso tem impacto inegável na percepção internacional. Para os que estão no Brasil, olhares estrangeiros, ou de brasileiros que trabalham em instituições estrangeiras, podem ser complementares à produção nacional e mostrar novos ângulos sobre questões que nos são caras.

Muito comumente, um olhar desfamiliarizado tem o poder de nos confrontar com a natureza mais instigante e brutal daquilo que somos. É preciso que o Brasil siga no esforço coletivo interminável de se buscar e de se interpretar, para que possamos seguir nos reinventando. Isso inclui, certamente, entendermos melhor a imagem que projetamos no olhar do outro.

Luiz Ruffato: ‘Literatura é compromisso’

‘Fui operário e fruto de uma família operária. Decidi escrever sobre isso. Representar esse universo na literatura é uma decisão política.’

por Daniel Mandur Thomaz

Publicado por Carta Maior em 31/03/2015 – http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/Luiz-Ruffato-Literatura-e-compromisso-/39/33164

Divulgação

Foi numa tarde de quarta-feira, 18 de março, que o escritor brasileiro Luiz Ruffato entrou no auditório da Universidade de Leiden, a mais antiga e tradicional da Holanda, para falar aos alunos do curso de Estudos Latino-Americanos.  Quando saiu, deixou atrás de si uma platéia boquiaberta pela força de sua simplicidade.  Escritor premiado e aclamado pela crítica, Luiz Ruffato é uma espécie em extinção na fauna literária brasileira: um autor que se posiciona como intelectual público, que não se esconde por detrás de preciosismos estéticos e fala sobre o Brasil, e seus complexos problemas, sem medo de se comprometer, sem beija-mãos ou rapapés.

Crítico contundente da realidade brasileira, Ruffato causou furor na feira do livro de Frankfurt, em 2013, quando o Brasil foi homenageado. Em seu discurso em Frankfurt, frente a editores, público e representantes políticos de diversos países – inclusive do Brasil – teceu uma série de considerações sobre o drama social brasileiro, o que causou constrangimento àqueles que esperavam do autor um discurso enaltecedor ou escapista. Ruffato tem uma bela capacidade de sintetizar, nas entrelinhas de sua fala mineira,  uma visão aguda sobre o Brasil. “Literatura é compromisso”, a frase que abriu seu discurso em Frankfurt é uma espécie de “refrão” que continua definindo sua posição intelectual. Sua fala na Holanda, em março de 2015, comprova isso.

Com uma trajetória impressionante, Luiz Ruffato, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira semi-analfabeta, trabalhou ele mesmo como pipoqueiro e torneiro mecânico em Cataguases – MG, até formar-se em jornalismo e pavimentar com as próprias mãos seu caminho literário de escritor premiado. Seus personagens refletem justamente essa trajetória. Dedicou-se sistematicamente a escrever sobre o universo das pessoas pobres e de classe-média baixa, esforço que se materializou na série Inferno Provisório, composta por cinco romances que traçam uma espécie de saga dos trabalhadores brasileiros ao longo do século XX. Seu livro mais conhecido, Eram eles muitos cavalos (prêmio APCA de melhor romance em 2001), é construído como uma colcha de retalhos, mostrando uma São Paulo habitada por homens e mulheres simples, prosaicos, “desimportantes”, silenciados pelas narrativas tradicionais. Essa perspectiva de “baixo para cima” dá ao trabalho de Ruffato uma dimensão política importante, porque representa literariamente os que estiveram historicamente à sombra, num país ainda marcado por desigualdades profundas.

Acompanhe abaixo a entrevista que Luiz Ruffato concedeu a Daniel Mandur Thomaz:

Ruffato, como política e estética dialogam no seu trabalho?

Toda a minha escrita se constituiu como parte de uma decisão política. Na literatura de ambientação urbana no Brasil, não há representações da classe-media baixa, do trabalhador. E isso não é só na literatura não. Veja bem, no Brasil há inúmeras ruas com nomes de corruptos notórios, nunca vi uma rua chamada operário fulano de tal. Fui operário e fruto de uma família operária. Decidi escrever sobre isso. Representar esse universo na literatura é uma decisão política. Claro, essa foi uma decisão estética também… eu não acredito que estética e politica sejam coisas que estejam separadas. Então, quando tomei essa decisão, de escrever sobre o universo do trabalhador, queria desarmar a imagem profundamente caricata que o trabalhador pobre e de classe-média baixa tem na literatura brasileira. Além disso, tinha um problema também de linguagem. Veja bem, não é porque você vai descrever pessoas pobres que a linguagem e a psicologia têm que ser pobre. Eu me voltei muito contra esse preconceito.

Como você lidou com a repercussão de seu discurso na feira de Frankfurt, em 2013?

Engraçado. Até hoje não entendi porque minha fala foi considerada polêmica. O que falei lá é notório. Qualquer um que fizer uma busca básica na internet vai ver o que estou dizendo. Falei que nós matamos sistematicamente nossos índios. Que a desigualdade social é brutal. Que a violência contra o negro e a mulher é diária e profunda (o Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo). Que a educação e a leitura no Brasil são artigos de luxo. Que somos machistas, racistas e violentos. Onde está a novidade nisso? Aí me disseram que ali não era o lugar adequado pra eu dizer isso. Então me pergunto, se uma feira de literatura não é o lugar adequado pra se discutir ideias, onde é? Numa feira agropecuária? (risos) E eu que imaginava que o papel dos intelectuais era pensar o mundo…

Ainda sobre isso, como você vê o papel político do artista e do intelectual no Brasil hoje? Quero dizer, existe isso no Brasil, o intelectual público, alguém engajado em discutir de forma ampla os problemas do país?

Esse é um ponto bastante problemático. Primeiro porque, por força da tradição autoritária – somos uma população que foi sempre tratada no chicote, oprimida – o Brasil tem uma história marcada por ditaduras. Além disso, grande parte da chamada intelectualidade brasileira é produto das classes altas e têm compromissos com essas classes. E também, por conta de outros fatores, nós acabamos abrindo mão desse papel, de intervenção no debate sobre a coisa pública. Então, não é muito comum esse tipo de exposição. As pessoas pensam ah… escritor tem que escrever, esse negócio de escritor falando de política é um desastre. Não dá! (risos). Mas numa sociedade como a nossa, se você tem um espaço pra falar, se você tem voz e se omite… sei lá, acho no mínimo uma covardia. Claro, não exijo nem espero isso dos meus colegas, não acho que eles sejam todos obrigados. Mas é uma pena. Olha só, a grande maioria dos escritores brasileiros usa redes sociais pra se promover, pra promover seus livros, ou pior, pra fazer fofoca e espalhar maledicências. Dificilmente vêm a publico pra se posicionar criticamente em relação a qualquer coisa que seja. E por quê?  Fica todo mundo preservando seu pequeno quintal. Inclusive, se posicionar não é bem visto… quer ver? Depois do meu discurso em Frankfurt, teve escritor brasileiro dizendo em rede social:  É isso que dá deixar o filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira falar em nome do Brasil.

Você é muito traduzido hoje, e também estudado em universidades. Existe, inclusive, um bocado de teses de doutorado sobre você. Como você lida com esse processo de “canonização” do seu trabalho?

Bom, eu tenho uma ótima relação com a universidade. Na verdade, hoje, praticamente só há critica literária dentro da universidade. Fora da universidade não há crítica séria. Nos jornais, faz muito tempo que não tem. E eu gosto de ler o que se escreve. Enfim, minha única ressalva à universidade é que eles citam demais. As pessoas se defendem demais por detrás de outros autores. Por exemplo, o camarada precisa usar o Walter Benjamin (um teórico alemão) pra dizer aquilo que ele [o crítico] quer falar. Bom, eu já sei o que o Benjamin acha, quero saber agora o que ele [o crítico] acha (risos).   Eu tenho o maior apreço pela crítica universitária. De verdade. Mas isso não influencia em nada o meu trabalho.

Você se considera um “homem de imprensa”? Sua formação e seu trabalho como jornalista influenciaram a sua escrita?

Eu sempre fui um péssimo jornalista. Não é modéstia, eu realmente era muito ruim. Sou muito tímido. Eu praticamente dediquei todo o meu trabalho jornalístico para dentro da redação. Trabahei 13 anos no Estadão [o Estado de São Paulo] e você não vai achar uma matéria minha assinada. Ficava como redator, como editor, eu gostava era disso, de editar o material bruto. Não acho que o jornalismo tenha influenciado tanto. Bom, talvez tenha influenciado um pouco o meu olhar…

Como você avalia a cobertura política da grande imprensa brasileira?

A mídia brasileira é ruim em qualquer cobertura. Os jornais representam a defesa de interesses muito específicos… é muito ruim, muito ruim mesmo. E talvez o mais grave, nós não temos uma democracia na mídia…

Você publicou recentemente uma crônica onde fala de música, sobre a primeira vez que ouviu Pink Floyd. A música está presente na sua escrita? Você escreve ouvindo música? O que toca na sua vitrola?

A única coisa que me tira do foco é música. Não ouço nada escrevendo. Mas tenho um gosto musical eclético. Ouço de Racionais Mcs à musica erudita contemporânea. Gosto muito do Arvo Part [compositor estoniano de música sacra contemporânea]. Tenho curiosidade. Só não gosto de música ruim … (risos)

Você também escreve poemas (tem três livros de poesia publicados). Qual é o papel da poesia na sua obra?

Meus colegas poetas não me consideram poeta e sim prosador… (risos). Mas eu sou muito mais leitor de poesia do que de prosa. A poesia é fundamental pra mim. Escrever o que escrevo sem a intermediação da poesia seria impossível. Mesmo minha prosa é encharcada de poesia.

Como explicar a um estrangeiro a onda conservadora que assola o Brasil

Opinião: Como explicar a um estrangeiro a onda conservadora que assola o Brasil

Por Daniel Mandur Thomaz

É ingrata a tarefa de explicar a alguém de fora a onda de conservadorismo que invade o Brasil. Os gringos mais bem informados, aqueles que tentam (nem sempre com sucesso) evitar o discurso do exotismo que se produziu historicamente sobre o Brasil (das mulatas, da caipirinha e do carmaval), costumam olhar para nós através das lentes da imprensa internacional.

Escândalos de corrupção eles conhecem bem. Atualmente, os noticiários internacionais repercutem com grande força o esquema de corrupção e evasão de divisas operado em vários países do mundo através da rede de bancos HSBC. A corrupção no setor público e privado não foi inventada no Brasil, nem se restringe a seu espaço geográfico. Protestos contra o governo, pressão popular por mudanças, isso é saudável e fácil de explicar a estrangeiros. Aqui mesmo, na Holanda, centenas de estudantes marcharam pelas ruas semana passada contra o processo de privatização e “financeirização” do ensino superior. Mas quando se trata da nova onda conservadora que assola o Brasil, com direito a pessoas na rua pedindo golpe militar e políticos como Jair Bolsonaro sendo aclamados publicamente, aí a coisa complica.

Não é que não exista extrema-direita na Europa. Ela existe e se fortaleceu na última década em países como Inglaterra, França e Holanda. A questão são as bandeiras que empunham reacionários daqui e de lá. Para ficarmos no caso europeu, os Le Pen, na França, partidos como Ukip, na Inglaterra, ou políticos como Geert Wilders, na Holanda, têm pontos em comum. Eles foram capazes de produzir grandes catarses em populações que, aterrorizadas pela crise e seus efeitos, procuravam a quem culpar. A extrema-direita foi, historicamente, caracterizada pela capacidade de dar vazão ao medo e a frustração das pessoas em momentos de crise aguda porque garantiu, através de processos de distorção e simplificação, a produção de bodes expiatórios. Isso é o que une em essência a extrema-direita ao longo da história. Trata-se de um jogo de negação e projeção perigosíssimo, porque encontrar um bode expiatório significa negar a própria responsabilidade e empurrar para um grupo pré-selecionado a culpa de todo o mal, de todo caos que impera em nossas vidas. Discurso simplista, preconceituoso e que culpabiliza terceiros pelos nossos próprios erros: eis aí a fórmula do bode expiatório que a extrema-direita e seu discurso de ódio foi capaz de sintetizar em momentos cruciais.

A direita liberal na Europa, como na América Latina, joga a culpa da crise no colo do Estado e das políticas sociais; claro, se admitisse que o problema foi gestado e parido pelo mercado financeiro, daria um tiro no próprio pé. A extrema-direita costuma ser especialmente bem sucedida em tempos difíceis porque tem a capacidade de buscar culpados que estão ao alcance dos olhos. Abstrações teóricas ou jargões econômicos – como os que usam liberais ou sociodemocratas – são difíceis e não têm apelo popular. Por isso, os bodes expiatórios na Europa são quase todos os mesmos: imigrantes, grupos étnicos e religiosos minoritários e todas as pessoas de algum modo categorizadas como o “outro”. Se você perpassar várias dessas categorias, muitas vezes marcadas pela negação –  não-branco/não-cristão/não-europeu – bem, aí é melhor se preparar para ser empalado.

Esse traço essencial da extrema-direita, presente nos fascismos que marcaram o século XX, aparece também no caso brasileiro. Os grupos fundamentalistas que vociferam contra os direitos LGBTs, que tentam sistematicamente sabotar debates sobre direitos humanos no Congresso, ou ainda os que defendem a negação de qualquer forma de política, através da intervenção militar, operam também por negação e projeção, buscando bodes expiatórios que tornem simples uma realidade complexa; plana, uma conjuntura cheia de relevos.  A diferença, no entanto, é que a extrema-direita no Brasil ganhou um espaço que ela não tem na Europa: um assento na mesa de negociações com outros setores liberais de centro-direita. O desejo cego de minar o governo e espernear a derrota nas urnas faz com que partidos de direita apoiem estratégias golpistas e marchem ao lado de grupos extremistas e criminosos. Para usar uma imagem antiga, correm o sério risco de jogar fora o bebê junto com a água de banho. Esse equívoco pode ter um grande custo para o Brasil.

Declarações como as de Jair Bolsonaro, feitas em sessão plenária, de que só não estuprava uma deputada porque ela não merecia, fariam corar mesmo os reacionários europeus mais facinorosos, como o islamofóbico Geertz Wilders, político holandês cuja bandeira é a expulsão de muçulmanos (mesmo dos nascidos em território europeu).  O político inglês Nigel Farange, xenófobo declarado e líder do partido anti-União Européia Ukip, na Inglaterra, causou escândalo em 2014 por se negar a declarar apoio ao casamento de pessoas do mesmo sexo, o que diria então a imprensa britânica diante da bancada evangélica brasileira, que defende a “cura gay”. Mesmo Marine Le Pen, na França, com seu discurso nacionalista, racista e xenófobo tentou, pelo menos para manter as aparências, descer o tom característico de seu pai, Jean-Marie Le Pen, conhecido por seu antissemitismo e por ligações com grupos neo-nazistas. Enquanto isso, no Brasil, alguns grupos clamam em plena rua por intervenção militar e, consequentemente, pelo fim do Estado de direito.

Não é que os reacionários de lá sejam melhores que os nossos, longe disso. Mas parece que as próprias regras do jogo democrático, na Europa, inibem um pouco a vocalização de certas ideias. No Brasil, falta constrangimento porque falta repertório democrático. Falta também uma memória consolidada e crítica sobre o brutal processo ditatorial que varreu o Brasil de 1964 à 1985 e deixou marcas profundas em nossas instituições e em nossa cultura política.   Isso sim é difícil de explicar a um estrangeiro.

Fotos: Reprodução Facebook Jornalistas Livres

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